A ESCOLA DE MAGOS
Luiz FM Lima
– Então o Sr. é um mago? – Perguntou o Professor Raamos, direta e polidamente, a Rufus Signis sentado a sua frente.
Rufus Signis demorou a responder enquanto passeava o olhar pelas belas dependências do salão de estar do Clube Comercial. Seu pensamento divagou a respeito das circunstâncias que o fizeram conceder esta entrevista ao interlocutor que, no momento, o interpelava de modo tão objetivo.
Rufus voltou sua atenção à conversa e perscrutou a expressão do Professor, um homem de meia idade e farta cabeleira branca. A seguir respondeu, ligeiramente enfático, sem contudo elevar a voz:
– Não, em absoluto sou um mago. No entanto, tenho certeza que ninguém neste mundo os conhece tão profundamente quanto eu – O Professor Raamos fez uma expressão de curiosidade e surpresa, mas não interrompeu Rufus – Acontece que fui criado por feiticeiros.
A expressão de curiosidade em Raamos aumentou. Rufus seguiu falando:
– Vou contar-lhe a história, o Professor tirará suas conclusões e as utilizará como quiser, conforme nosso entendimento preliminar.
Rufus fez uma pausa antes de continuar e, por um breve momento, conjecturou sobre a responsabilidade que assumira ao aceitar este encontro. Muitas coisas do passado viriam à tona; coisas que talvez devessem ficar cobertas pelo esquecimento. Mas Rufus tinha convicção do que fazia e aquilo era realmente necessário.
– Aziz Ibn Al-Tugut, “Kibir” Tugut, foi meu pai. De fato, adotou-me, conforme seu próprio relato e deu-me à guarda de uma de suas mulheres, Abbas, a quem venero como minha verdadeira mãe.
E continuou seu relato…
Rufus não era um “dotado”. Assim se referiam os feiticeiros àqueles que possuíam poderes extraordinários. No entanto, como percebera a sensibilidade de Tugut, tinha uma inteligência incomum. Cresceu entre “dotados” e não teve uma infância tranqüila pois, com freqüência, vira-se vítima dos sortilégios de seus companheiros. Tugut, no entanto, estivera sempre presente para corrigir a situação. Embora com a proteção de “Kibir” Tugut, o que refreava o ímpeto dos jovens feiticeiros, temerosos da reação do mestre com quem perturbasse seu filho adotivo, Rufus ainda podia se lembrar das inúmeras vezes em que tivera o imenso desprazer de sentir-se atormentado pelo medo, dor ou náusea profunda, além de outras variadas formas de inconveniências que aqueles inconseqüentes jovens lhe infligiram.
– Posso lhe garantir que a vida de um “comum” entre “dotados” não é nada fácil. – prosseguiu Rufus – Um dia, queixei-me a “Kibir” Tugut das agruras que era submetido e ele limitou-se a dizer-me:
” – Seja mais esperto!”
Em princípio fiquei decepcionado, mas com o tempo entendi o que Tugut tinha em mente. O fato de possuir um dom não faz de ninguém uma pessoa inteligente, ajuizada ou bem educada, trata-se apenas de uma qualificação excepcional que se não for cultivada não terá nenhuma utilidade para quem a possui. Ademais, os “dotados” tinham uma tendência a serem egocêntricos, vaidosos e muito orgulhosos. Ao perceber isto modifiquei meu modo de ser e pude traçar uma estratégia de vida mais confortável para mim. Continuava contando com a proteção de Tugut e Abbas, principalmente naqueles momentos em que as coisas fugiam ao meu controle, mas, cada vez mais, prescindia da interferência deles.
Rufus Signis fez uma pausa em seu relato. Chamou um garçom e por breves instantes ele e o professor confabularam sobre o que almoçariam, entrementes, pediram algumas bebidas. Enquanto as aguardavam trocaram palavras ocasionais, sobre o tempo, a moda, os negócios. Rufus no entanto não deixou de examinar o Professor Raamos um segundo sequer, procurando interpretar suas reações faciais, seus gestos, tudo enfim que pudesse lhe revelar mais daquele homem a quem confiava suas memórias. Notou que o Professor parecia bastante à vontade, embora um pouco excitado. Mesmo que não estivesse acreditando numa única palavra de Rufus, não deixara, até o momento, que isto transparecesse. Esta idéia lhe ocorreu porque em outras raríssimas ocasiões em que abordara tal assunto com outros “comuns”, estes tendiam a adotar um variado comportamento, do riso à indignação. Mas, o Professor Raamos tinha credenciais que o recomendavam.
– Continuando – Rufus retomou a narrativa – quando completei 30 anos “Kibir” Tugut designou-me como ajudante de Remo Arranti, um jovem feiticeiro seu protegido, e muito talentoso. Para um mago esta é uma idade juvenil, e eu assim aparentava, embora não fosse um “dotado”. Atribuo tal fato às artes de Tugut e Abbas, principalmente a ela, pois seu dom peculiar era relacionado com o corpo, a saúde e a cura. Não vou lhe dizer quantos anos tenho pois não acreditaria mesmo, mas sou muito, muito velho, e devo isto a meus pais adotivos. Não foi por acaso que me concederam tanta saúde e longevidade. Entendi, mais tarde, que “Kibir” Tugut assim o desejou como parte de seu plano para mim.
Bem, Remo Arranti era um feiticeiro muito especial, não só por ser protegido de Tugut, como pelas suas habilidades, merecedor de um ajudante à altura, um jovem aprendiz “dotado”, e não um “comum” como eu. A princípio temi que esta tarefa me trouxesse muitos dissabores pois, não possuindo qualquer qualificação excepcional, certamente irritaria meu “patrão”; e os magos não são pessoas a quem devamos desagradar. Mas, para espanto meu, Remo Arranti ficou satisfeito com a indicação. Isto tinha a ver com sua personalidade invulgar, como pude deduzir da longa convivência que tivemos. Remo Arranti era sobremodo inventivo e vaidoso e por isto não queria dividir seu conhecimento com qualquer outro mago. Nada melhor do que ter um “comum” para ajuda-lo.
Aziz Ibn Al-Tugut conhecia a alma de Remo Arranti. Sabia que Remo jamais me maltrataria, em respeito a ele, e que eu saberia como conviver com Remo Arranti, tirando o melhor proveito disto. Na ocasião não me dava conta destes aspectos, tudo que queria era agradar “Kibir” Tugut e Remo Arranti, até mesmo como uma forma de angariar respeito entre os “dotados”.
Havia um deles, mais jovem do que eu, muito’talentoso e ambicioso, Pitris era como se chamava, que pleiteava ser o ajudante de Remo Arranti. Ao saber da decisão de Tugut, enfureceu-se e anunciou que meus dias estavam contados. Aziz Ibn Al-Tugut fez com que Pitris engolisse suas bravatas. O resultado é que Pitris passou a odiar-me. Foi o único mago em toda minha longa existência com quem tive alguma inimizade.
– E que destino teve Pitris? – Perguntou o Prof. Raamos.
Rufus Signis repassou suas memórias, lembrando-se de seus primeiros anos como ajudante de Remo Arranti.
A vida de um ajudante de feiticeiro é muito arriscada, principalmente não sendo um “dotado”, como no caso. Os feiticeiros, naquela época, eram muito requisitados e gozavam de grande prestígio. Um mago poderoso fazia fortuna com facilidade e não havia tempo para todos os trabalhos disponíveis. A fama seguia os passos de Remo Arranti, “Audaz” Arranti, como se tornou conhecido. Ele e Rufus viajavam incessantemente de um lugar a outro, aceitando os trabalhos mais difíceis e arriscados e, conseqüentemente, que lhes traziam maiores riquezas. Rufus passou a administrar os negócios do “patrão”, selecionando inclusive os casos que aceitariam, as condições de pagamento e as salvaguardas. Estas últimas exigências foram introduzidas nos contratos por Rufus, como aliás, a própria idéia de fazer um contrato escrito. Havia um motivo para isto. Durante suas peregrinações Rufus recolheu inúmeras histórias de feiticeiros, alguns dos quais conhecera, que após terem concluído’suas obrigações foram assassinados, presos ou banidos, sem receberem suas pagas. Os feiticeiros eram pessoas de prestígio, mas odiadas. O poder da magia assustava a todos, principalmente àqueles que alugavam os serviços dos bruxos. Algumas vezes Rufus e Remo tiveram de fugir às pressas de algum lugar, vendo passar por sobre suas cabeças flechas e tiros. O que não impedia que logo adiante outros viessem lhes pedir auxílio em troca de promessas de tesouros incontáveis.
A ambição movia o homem, era o que Rufus concluíra depois de décadas dedicadas a ajudar Remo “Audaz” Arranti. Sua audácia era proporcional à sua ambição e vaidade, levando-o muitas vezes a atos inconseqüentes. Mesmo o mais virtuoso feiticeiro tem seus limites e foi vendo isto que Rufus descobriu uma faceta comum no caráter dos mágicos.
Um dom pode ser uma maldição mais do que uma benesse. Os “dotados” são diferentes, e isto os leva, ao mesmo tempo, a se sentirem poderosos, invejados e rejeitados pelas pessoas. São criaturas solitárias , afetivamente imaturas.
– Estávamos, pois, a caminho do reino de Anuris – Rufus Signis falava para o Professor Raamos sem lhe ter respondido a pergunta sobre o paradeiro de Pitris – Remo Arranti ouvia meu relato sobre o caso, com os olhos semicerrados, recostado nas peles dentro da carroça. O cocheiro não escutava nada, Remo encarregara-se disto através de um pequeno sortilégio, mas eu tinha dúvidas se o próprio Remo me escutava.
” – Senhor” – disse-lhe – “Este é um caso muito arriscado e complexo. Em primeiro lugar, trata-se de uma disputa familiar de poder. O reino de Anuris era governado por Gimom IV, que morreu, deixando o trono para ser disputado pelos filhos de suas três esposas. Em princípio, concordaram em um triunvirato, mas, algum tempo depois, um dos filhos herdeiros, o primogênitos Gimom V, foi encontrado morto em seus aposentos. Os dois irmãos herdeiros, remanescentes, acusaram-se mutuamente de terem assassinado o falecido. O reino dividiu-se e vivem hoje em beligerância. Para complicar as coisas a viúva de Gimom V é acusada de ser amante do cunhado, Gimom VI de Anuris-Leste. Ela alega que é prisioneira, embora assim não pareça. Certo ou errado, Gimom VI de Anuris-Oeste, os dois tomaram o mesmo nome, quer que a viúva seja liberada e entregue à sua proteção, o que não é do agrado dela nem de seu cunhado e suposto carcereiro. Os dois reis procuram um meio de eliminar um ao outro, mas há um inconveniente. Segundo meus informantes, uma nova morte pode desencadear a revolta da população , que teria inclusive o apoio de inúmeros nobres poderosos, naturalmente movidos por interesses particulares. Portanto, nenhum dos dois pode morrer ou vir a ser acometido por alguma doença suspeita.
Fomos contratados por Gimom VI, de Anuris-Oeste, em princípio para bloquearmos qualquer malefício que tenha sido lançado sobre o reino. Eles acham que a viúva de Gimom V tem a seu serviço um poderoso cagüira, que não só eliminou o Rei como enfeitiçou o cunhado, de tal modo que o coitado não dá um passo sem aconselhar-se com a cunhada viúva.”
– Neste exato momento da minha explanação Remo “Audaz” Arranti teve uma idéia, por um lado genial, e por outro, tenebrosa e perigosíssima
” – Rufus” – disse-me ele, subitamente desperto – “O quanto ofereceriam para eliminarmos o cagüíra, a viúva e o próprio Rei?” – e antes que eu retrucasse, protestando contra tal disparate, continuou a falar – ” Ouça, a única solução possível é que este tal de Gimom da viúva, ou seja lá quem for, não queira, ou não possa aparecer e que seus asseclas também não queiram que ele se mostre e, aí está a parte genial, mesmo tendo de admitir que ele está vivo. Sim, é isto mesmo, algo tão vergonhoso que os obrigará a aceitar a derrota. Eles têm um feiticeiro, não é mesmo? Pois jogaremos neste terreno, feitiço contra feitiço!”.
– Tentei explicar-lhe que , de fato, o cagüíra a que se referiam era um charlatão, um prestidigitador talentoso, mas não um mago e, portanto, se ficássemos com o contrato original ganharíamos um bom dinheiro sem nenhum trabalho ou risco, mas Remo Arranti, o “Audaz”, queria mais do que isso, queria fortuna e fama.
Neste ponto Rufus fez uma pausa, o suficiente para que o Professor Raamos lhe dirigisse uma pergunta:
– Sr.Rufus, este seu relato é de tal forma revelador para mim que não gostaria de interromper, entretanto, escapa à minha possibilidade de compreensão certos aspectos do que o senhor chama de “dons”. São estes “dons” de alguma forma hereditários, podem ser transmitidos ou aprendidos? São permanentes, ou transitórios? Podem ser aumentados, ou diminuídos? Enfim o que são estes “dons”?
Rufus demorou-se um pouco a responder, como se estivesse organizando o pensamento:
– Durante toda minha longa vida procurei a resposta a estas questões, e confesso que não consegui sucesso. São ainda mistérios para mim e acredito que para os magos também. Mas, algumas observações que fiz são respostas aproximadas. Por exemplo, não há, no meu entender, hereditariedade nos “dons”. Raramente filhos de “dotados” o são também. Muitos casos eu vi em que os filhos tentavam seguir o caminho dos pais para a seguir fracassarem, e algumas vezes de forma trágica. Outros tornavam-se prestidigitadores ou místicos, até com um certo sucesso, mas nenhum realmente “dotado”. Quanto à transmissão de “dons”, somente é possível entre dois “dotados” e assim mesmo de maneira imperfeita. Com certeza o que eu sei é que não se transforma um “comum” em “dotado”, agora, entre “dotados” muita coisa é possível. Curioso, no entanto, é que o efeito de um sortilégio, ou o poder de um mago, pode ser aumentado ou diminuído. Diria mesmo que um “comum” tem condições de bloquear um “dotado” em certas circunstâncias.
– O Senhor tem esta capacidade? – Interrompeu o Professor Raamos.
Rufus sentiu um leve sobressalto com a pergunta e, por uma fração de tempo duvidou se deveria responde -la, mas o fez:
– Sim, creio que a tenho bem desenvolvida, e isto devido exatamente ao meu longo convívio com estas pessoas especiais.
Rufus ia continuar a falar quando o Professor Raamos cortou-lhe outra vez o discurso:
– Perdoe-me, mas porque havia tantos “dotados” aonde foi criado?
Rufus emendou a resposta:
– Eis um dos pontos fundamentais da questão! “Kibir” Tugut foi o responsável pela reunião de tantos “dotados” em seu país. Descobri, depois de muito tempo, que Tugut, durante décadas, percorrera milhares de léguas em busca destas individualidades. Creio mesmo que tenha, por vezes, raptado alguns. Sua preferência era por “dotados” jovens, infantes mesmo.
– E porque, sendo o senhor um “comum”, “Kibir” Tugut o adotou?
– Ah! Boa pergunta. Eu custei a responde -la. “Kibir” Tugut precisava de mim para seus planos.
– Que planos?
O professor Raamos estava mais inquieto agora, notou Rufus. Isto fez com que Rufus Signis retomasse a narrativa em um ponto anterior, com o claro intuito de arrefecer a curiosidade do professor.
– Voltemos a Anuris e Remo Arranti, e em seguida lhe responderei esta questão.
O professor resignou-se num gesto com as mãos significando “adiante”.
– Pois – continuou Rufus – fui compelido pelo meu “patrão” a sondar o Rei Gimom VI de Anuris-Oeste quanto às novas proposições de Remo. Consegui, em princípio, que o contrato original fosse cumprido e, enquanto o tempo passava, fazia gestões para que houvesse um momento propício de reformular o acordo. Por mim nunca teria abordado tal assunto mas, Remo Arranti cada vez mais se entusiasmava com a idéia e aprofundava seus planos para concretiza -la. Do ponto de vista de raciocínio, a idéia de Remo era perfeita, embora na ocasião eu não tivesse a mínima idéia de como ele faria esta mágica: obrigar Gimom VI de Anuris-Leste e a viúva de seu irmão e sua atual amásia, a aceitarem a derrota para seu rival do Oeste e se retirarem espontaneamente.
Os anurienses, eram muito supersticiosos e imensamente ignorantes, o que aumentava as possibilidades de Remo Arranti.
– Senhor Rufus! – Raamos incisivamente buscava orientar-se na conversa – Esclareça-me esta sua última afirmação. O que importa a ignorância do povo nas artes de um mago?
Rufus sorriu, não pela pergunta, mas pelo Professor, por não ter contido uma certa inquietação’ao perceber que Rufus vinculara as virtuosidades de um mago ao nível de cultura do povo.
– Professor, a superstição e o preconceito são para a magia como o vento para o fogo. Eis uma vantagem em ser um “comum” entre “dotados”. Eu pude perceber isto com clareza porque não temia a magia, embora tivesse sido vítima dela em muitos momentos. Como dizia, os anurienses tinham verdadeiro pavor da feitiçaria e isto se devia , estou convicto, à ignorância deles. Mas, o que é mais surpreendente, a força de um mago será também tanto maior quanto mais ignorante for este mago do significado de sua magia.
– Oh! – exclamou, surpreso, Raamos.
– Eu explico. – apressou-se Rufus em tornar mais clara suas opiniões antes que seu interlocutor se impacientasse – Quando digo “força” de um mago, quero exprimir o sentido da vontade e determinação deste homem ou mulher, possuidor de um “dom”, em por em prática suas habilidades. Em outras palavras, de que vale um mago sem ânimo para a magia?
– Mas isto não muda o poder de um mago… me parece. – Asseverou Raamos um tanto desconcertado.
– Professor, a cultura, o saber e a iluminação do auto-conhecimento é para um mago e sua magia, como a água para o fogo.
Rufus fez esta última alocução de forma pausada e firme, olhando o Professor Raamos direto nos olhos. Rufus percebeu que pela primeira vez na conversa seu interlocutor acabrunhou-se, e seu rosto enrubesceu ligeiramente. O próprio Raamos após um breve momento sugeriu:
– Por favor, senhor Rufus, continue.
– Obrigado. Creio que poderei esclarecer melhor suas dúvidas com fatos. Como dizia, todos estes fatores fizeram com que nosso real patrão aceitasse a oferta de Remo Arranti. As imprecações do bruxo de Anuris-Leste não tinham nenhuma força, exceto psicológica, mas eram eficazes para atemorizar tanto quanto os verdadeiros sortilégios. Conseguíamos dissipar a tensão através de pantomimas de “limpezas” e contra-feitiços, com profusão de fumaças coloridas e beberragens intragáveis, mas o medo se alimenta do próprio medo, de tal forma que Sua Alteza Real Gimom VI de Anuris-Oeste, não suportava mais viver ameaçado pela sua própria superstição. Mesmo o absurdo preço que Remo pediu, e eu o aumentei ainda mais na esperança que o Rei desistisse, não foi suficiente para superar tanto pavor:
” – Façam rápido” – decretou Sua Alteza.
Eu não tinha a mínima idéia do que Remo faria, nem me atrevi a perguntar-lhe. Por não ser um mago esta curiosidade não me perturbava, exceto pelas conseqüências que poderiam advir. Aliás este era um dos motivos pelo qual “Audaz” Arranti me aceitava como ajudante, suas magias estavam seguras de não serem reveladas. Entretanto, eu sempre que podia buscava me inteirar do tipo de resultado que seus encantamentos trariam e preparava nossa retirada do cenário de acordo com o risco decorrente. Neste caso Remo tornou-se de tal modo circunspecto que julguei melhor tomar as mais rígidas precauções, o que se demonstrou mais tarde ter sido uma conduta acertada.
Algumas semanas se passaram e Remo Arranti incumbiu-me de várias tarefas, às quais cumpri diligentemente. Entendi que iríamos entrar no reino de Anuris-Leste pois fui encarregado de providenciar disfarces, mapas e obter informações detalhadas da planta do palácio de Gimom VI de Anuris-Leste.
O ambiente da corte de Gimom VI de Anuris-Oeste, nosso cliente, tornava-se cada vez mais tenso e eu já pressentia que teríamos problemas caso Remo não agisse imediatamente. Mesmo porque, Sua Alteza já nos adiantara uma fabulosa quantia como pré-pagamento.
Um dia, Remo pediu uma audiência, como sempre, secreta e com reduzidíssimos participantes. Dirigímo-nos ao local acertado e tão logo os participantes se acomodaram Remo deu início à sua preleção:
” – Vossa Alteza Real permita-me dar as informações necessárias que deverão orienta -los assim que eu termine meu trabalho.” – O Rei acenou-lhe que prosseguisse – “Obrigado Alteza. Devo dizer-lhes que tudo será feito após a festa de aniversário do Tirano de Anuris, daqui a poucos dias.” – era proibido citar o nome de Gimom VI de Anuris-Leste, ou que o país estivesse dividido em Leste-Oeste. Remo continuou: “-Tão logo eu de um sinal, Vossa Alteza deverá demonstrar o desejo de melhorar suas relações com o Tirano. Convocará seus nobres e fará uma declaração na qual encarregará uma delegação de embaixadores para levarem ao Tirano um valioso presente: nada menos do que a coroa de diamantes de Gimom V.”
– Neste ponto o Rei arregalou os olhos e ficou boquiaberto por um instante, antes de explodir em desaforos e protestos contra Remo. Eu mesmo fiquei atônito, pois isto significaria na prática reconhecer a precedência do Tirano e dar-lhe o trono de Anuris. A muito custo conteve-se o soberano e, no entanto, Remo “Audaz” Arranti, justificando a alcunha, mostrava-se imperturbável. Cessado o alvoroço e questionado rispidamente pelo Rei, Remo retomou a palavra:
” – De fato, Alteza, não há porque se preocupar, pois o Tirano jamais poderá aceita -la ou usa á-la, e claro, ele estará vivo e no castelo, mas não poderá, nem seus asseclas quererão que apareça em público. Enquanto a embaixada aguarda a resposta do Tirano, a coroa será exibida ao povo e Vossa Alteza fará generosa doação aos pobres e doentes e igualmente a alguns nobres de lá.” – O Rei outra vez insurgiu-se contra as palavras de Remo e gritou a plenos pulmões:
” – Este feiticeiro louco quer me arruinar! Tirem-no daqui, dêem cabo dele!” – Embora eu estivesse literalmente apavorado com a audácia de Remo, sabia que não havia ninguém ali que pudesse cumprir as ordens do Rei, éramos pouco mais do que meia dúzia de pessoas. Um dos nobres presentes sentindo que aquela reunião poderia degenerar-se em violência e, certamente temendo estar à mercê dos poderes de Remo, de pronto, procurou acalmar o soberano que a contragosto devolveu a palavra a Arranti:
” – Majestade, compreendo vossa indignação e peço humildemente o vosso perdão por te -lo irritado, mas permita-me terminar de expor o plano e tenho certeza que todos concordarão em ajudar. Estas doações não significarão nada quando Vossa Majestade assumir o total controle do país e os tesouros do Tirano usurpador, serão, digamos, um pequeno investimento para obter um incalculável lucro. O intuito disto é coloca-lo aos olhos do povo como um benfeitor sincero, pois todos estarão vendo a coroa posta em praça pública à espera do Tirano. Que nunca aparecerá pa usa usá-la! Agora, não posso lhes dizer porque ele não aparecerá, apenas que sofrerá algo tão vergonhoso quanto sua maldade tirânica, o que o impedirá de ostentar a coroa em sua cabeça! E mais, durante algum tempo a nefanda viúva tentará encobrir o fato, sem contudo negar que o Tirano vive, aí então todos se perguntarão aonde está o Tirano, e porque ele não aparece. Vossa Alteza deverá nesta ocasião dirigir-se ao palácio do Tirano e exigir que ele receba o presente. Como ele não virá, vossos espiões deverão espalhar o boato que a pérfida viúva está por trás destes estranhos fatos. Dirão que ela é uma bruxa hedionda, uma seguidora do demônio, que inclusive mantém um súcubo a seu serviço e que deseja usurpar a coroa de diamantes para si. Depois disto, é só aguardar que vos proclamem soberano de toda Anuris. Ela não poderá acusá-lo de nada já que, de início, afirmará que o Tirano vive e que virá receber a coroa.”
– Fez-se então um prolongado silêncio entre os presentes. O Rei olhava fixamente em algum ponto distante. Eu mal podia conter minha ansiedade e comecei a pensar que meu patrão estivesse realmente louco. Os nobres presentes calaram-se e olhavam para os próprios pés. Conjecturava sobre as possibilidades de sairmos vivos daquele encontro quando o Rei falou:
” – Feiticeiro, eu o vi proceder alguns milagres diante de meus olhos” – referia-se às seções de pequenos truques que Remo promovia para propagandear suas habilidades – “o que você me propõe agora, se der certo, confirmará sua reputação como o maior milagreiro da terra, mas se der errado, será a guerra e talvez a minha ruína. No entanto, não temo a guerra, que é iminente e, talvez esta seja uma boa forma de inicia -la de uma vez. Mas, neste último caso, sua vida não valerá nada pois todos os meus súditos irão caça á-lo aonde estiver, caso consiga escapar. Lembre-se disto, e prossiga com seu plano.”
– Imediatamente levantou-se e retirou-se. Ficamos, eu e Remo “Audaz” Arranti, sentados, em silêncio por muito tempo, até que não me contive e falei:
” – Senhor, eu nunca lhe pergunto como fará as coisas, mas desta vez, creio, mereço algumas explicações , nem que seja pela fidelidade que lhe venho dedicando.”
” – Que quer saber?” – Remo respondeu-me num tom baixo de voz, seguido de um suspiro de alívio e cansaço. Aquilo foi o suficiente para acalmar-me um pouco. Remo “Audaz” estava visivelmente emocionado e de um certo modo, assim eu senti, precisando do meu apoio. Respondi da maneira mais polida que pude:
” – De que modo estas coisas ocorrerão?”
Uma voz interrompeu Rufus Signis em sua narrativa. Era chefe do restaurante anunciando o almoço. Dirigiram-se para a mesa e iniciaram a refeição, conversando amenidades.
Após o repasto, enquanto fumavam charutos e bebiam digestivos, já agora no salão onde anteriormente se encontravam Rufus contou ao Professor a trama que Remo Arranti engendrara.
Naquela ocasião, enquanto Rufus andava de um lado para outro do reino cumprindo as tarefas que seu patrão o encarregara de fazer, um “duplo” de Remo o seguia. Isto é, um feitiço simples que fazia com que as pessoas vissem Remo em companhia de Rufus. Remo não alertara Rufus para o fato pois queria que tudo parecesse natural, já que o intuito era enganar os espiões do Rei, que não os largavam de vista nenhum momento. Enquanto isto Arranti, disfarçado, foi até Anuris-Leste e através de inúmeros artifícios engenhosos fizera-se apresentar ao cagüíra a soldo da viúva do falecido Gimom V. Verificando que este pequeno bruxo era um embusteiro mas que acreditava ter algum poder, contou-lhe uma mirabolante história de como ele, Remo Arranti, agora personalizando um velho feiticeiro decadente, estava fugindo de uma sentença de morte decretada pelo Rei Gimom VI de Anuris-Oeste, e esperando uma oportunidade de vingar-se. Alguns truques e muita bebida fizeram com que Minaru, o cagüira em questão, prometesse ajudar Remo em troca do conhecimento de suas mágicas. Em poucos dias “Audaz” Arranti conseguiu que Minaru se convencesse que dominava inteiramente um inumerável repertório de poderosos sortilégios. Procediam as sessões onde Minaru, certo de que pelos seus próprios poderes, fazia a transmutação de almas, o mais difícil,’perigoso e misterioso feitiço existente. Minaru fez com que Remo escrevesse todos os passos do encantamento, no que foi prontamente atendido. Ato contínuo procurou a viúva, sua protetora, e numa sessão a sós fez transmutar a alma de um escravo para o corpo de um cão da Rainha Zafa, como era conhecida a viúva. Obviamente que Remo, invisível para os dois, encarregou-se de que as coisas funcionassem. Sem muito esforço de Remo logo Zafa e Minaru foram induzidos a se lançarem num plano audacioso de tomarem o poder. Usando os novos dons de Minaru, que não revelou a Zafa como obtivera estas inéditas habilidades, fariam primeiro uma conjuração para que o Rei Gimom VI de Anuris-Oeste desejasse se submeter à vontade de seu irmão. Para demonstrar que encontrava-se subjugado, Minaru faria com que Gimom VI de Anuris-Oeste desse a coroa de diamantes de Gimom IV, o pai, para o irmão inimigo. Tão logo o tirânico Gimom VI de Anuris-Leste pusesse a coroa em sua cabeça, e assim iniciando a ruína de seu irmão presenteador, pois os nobres de Anuris-Oeste não tolerariam tal ato de fraqueza, Minaru faria com que a alma de Zafa migrasse para o corpo do Rei, e a alma deste para o além. Por mais incrível que fosse o plano de Remo Arranti dera certo até aquele ponto.
De volta a Anuris-Oeste, faltava convencer o Rei a aceitar o plano, e esta era a parte mais difícil pois não poderia faze -lo por intermédio de magias já que teria de enfeitiçar praticamente todo o reino, o que era impossível, mesmo para um mago excepcional como ele.
– Remo “Audaz” Arranti não era só um mago poderoso, era também uma mente privilegiada – declarou Rufus para o professor Raamos, enquanto servia-se de mais um cálice de vinho do Porto. – mas, naquele momento, não me disse como faria para que o Rei-Tirano não se apresentasse para receber seu real presente. Percebi que Minaru jamais conseguiria seu intento e que tanto ele quanto Zafa estariam cegos de ambição e poder quando nosso nobre anfitrião anunciasse a oferta. Remo limitou-se a dizer-me:
“Você estará comigo, e verá.” – o que deixou-me satisfeito e orgulhoso pois raramente permitia que alguém presenciasse uma imprecação. E disse mais:
“Aliás, prepare-se porque viajaremos imediatamente para Anuris-Leste.” – e completou a história de uma forma que deixou-me atônito – ” Esqueci de lhe contar o final de minha amizade com Minaru” – soltou uma gargalhada – “Ele me assassinou, ou assim o fiz crer. Na verdade ele tinha esta intenção, eu apenas não a impedi por completo. Terei minha forra” – soltou outra gargalhada, tão sincera que eu também desandei a rir. Foi realmente muito engraçado, e serviu para aliviar nossa tensão.
– Senhor Rufus – interrompeu Raamos – esta é a história mais incrível que já ouvi sobre este assunto e creio que ela se estenderá por longo tempo, portanto, sugiro que façamos a reserva para o jantar e a ceia pois não desejo perder nenhuma parte. Enquanto o senhor providencia nossas reservas eu lhe peço que me permita ausentar por uns momentos pois tenho alguns compromissos que devo atender.
– Como queira professor. Voltaremos a nos encontrar aqui mesmo.
Rufus e Raamos levantaram-se e foram tratar de outros assuntos.
Horas depois encontraram-se no salão, sentaram-se nos sofás de um dos ambientes e reiniciaram a conversa, tendo o Professor Raamos tomado a iniciativa:
– Senhor Rufus, não quero perder nenhum pormenor de sua narrativa, mas eu lhe pergunto, aonde chegaremos ? Esclareço. Tenho especial interesse, digamos acadêmico, em alguns aspectos da magia, mais particularmente nos magos, ou seja, quem são, quantos são, onde estão, e outros aspectos relativos à sobrevivência deles. Isto porque, segundo meus estudos, depois de determinada época desaparecem os relatos sobre estes seres peculiares. Um enorme silêncio. e justamente me pergunto, porque? Teria o senhor a possibilidade de me responder esta questão? De resto, embora muito interessante, não vejo como seu relato sobre as peripécias deste mago, Remo, poderão responder minhas indagações. No entanto, desejo ouvi-las até o fim.
– Creio, Professor – falou Rufus pausadamente – que poderei satisfazer todas as suas curiosidades, mas este episódio que lhe conto tem importância fundamental na resposta. Foi em conseqüência dele que a escola de magos foi fundada.
– Ah! – exclamou o professor – a escola de magos.
– Por acaso já ouvira falar dela?
– Sim, é claro. Aparece em muitos documentos referências a este respeito, mas até hoje não se tem certeza de sua real existência, nem onde, nem quando e muito menos o que realmente era a escola de magos.
– A escola de magos foi fundada por Aziz Ibn-Al Tugut.
– Fale-me dela então. – O professor Raamos disse enfaticamente.
Rufus Signis ficou alguns instantes pensativo e a seguir continuou seu relato sem atender imediatamente ao pedido do professor:
– Tudo correu exatamente como Remo Arranti previra. A embaixada trazendo a coroa chegou ao reino do tirano e, este mesmo marcou a data para receber o presente, com toda pompa que a ocasião exigia.
Eu e Remo nos instaláramos num albergue, disfarçados de comerciantes, e acompanhávamos a reação do povo ouvindo o que diziam nas feiras e nas tabernas. Embora surpresos os cidadãos rejubilavam-se com a possibilidade de reunificação do reino e o fim das perseguições políticas. O gesto de Gimom VI de Anuris-Oeste era visto com profunda admiração e as expectativas dirigiam-se, agora, para a reação do Tirano e de sua amásia, Zafa, tida como uma pérfida criatura que dominava o Rei através dos malefícios de Minaru.
Aproximava-se a ocasião da entrega da coroa de diamantes e portanto ultimamos os preparativos. Remo entrou no castelo, invisível, e eu como ajudante de cozinha para o grandioso banquete que aconteceria. Cuidei de preparar pães e bolos enquanto aguardava o chamado de Remo.
Naquela noite Arranti apareceu nos aposentos dos serviçais, vestido de soldado da guarda real, e levou-me com ele. Disse-me enquanto saíamos:
” – Chegou a hora, Minaru e Zafa estão nos aposentos do Rei. Vamos para lá.”
Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa Arranti acelerou o passo e, quase a correr dirigímo-nos aos aposentos reais. Não sei que tipo de magia ele fez mas foi muito eficaz pois passávamos pelos guardas como o vento.
No quarto de Sua Majestade nos acomodamos em um alpendre de modo que podíamos ver todo o salão abaixo de nós. Remo falou-me em voz baixa, embora não fosse preciso pois os três que ali estavam não poderiam nos ver ou ouvir:
” – Fique atento à porta. Tomei precauções para que nada ocorra, no entanto precisarei me concentrar e caso alguém apareça, jogue esta bola de cera no meio da sala. Uma névoa inebriante se espalhará e nos dará tempo de sair.”
Passou-me uma esfera do tamanho de uma laranja. Pretendia seguir a risca as instruções de Remo, mas tão logo a sessão começou esqueci-me completamente de olhar a porta.
No leito jazia o Rei, aparentemente dormindo. Ao seu lado deitou-se Zafa. Minaru, paramentado numa roupa esquisitíssima, que mais tarde soube ter sido idéia de Remo Arranti apenas para se divertir, postou-se aos pés da cama tendo a sua frente uma mesa onde colocou um enorme livro, outra pilhéria de Remo. Acendeu alguns incensórios e começou a ler uma imprecação. As palavras eram inteiramente disparatadas, sem o menor significado e não correspondiam a nenhum idioma o que, é claro, tratava-se de mais uma piada de Remo Arranti. Entretanto, este, ao meu lado, parecia que dormitava. Passados alguns minutos, o Rei abriu os olhos, mais exatamente, arregalou-os. Sua expressão era assustada, mas não se mexeu. Minaru continuava naquela cantilena desconexa e então Gimom sentou-se, levantou-se e com os olhos esbugalhados e a boca aberta rasgou a própria roupa sem emitir um som sequer. Zafa assustou-se, mas a um gesto de Minaru’permaneceu deitada, contudo, com um semblante contrito. Minaru passou rapidamente as páginas, fez uma gesticulação tola, talvez outra instrução pífia de Remo, e pôs-se a ler a baboseira escrita. Gimom começou a tremer-se todo, a urinar e defecar na cama, acocorou-se e a seguir pulou no chão, rolando pelo quarto esticando os braços e as pernas como se nadasse no seco. Em determinado momento parou, deitado de costas e olhou para suas pernas. A sua face era de intenso pavor, com os olhos esbugalhados e a boca abrindo, fechando e espumando, mas não fazia nenhum som. Eu estava horrorizado com a cena mas não entendia o que se passava. Zafa ao ver o Rei soltou um grito . Minaru parara de falar e olhava atônito para o Rei. Então a viúva falou quase gemendo, com a voz transida de medo:
” – O que é isto?”
Minaru estava lívido e imóvel e não conseguia responder. Suas mãos trêmulas ainda seguravam as páginas do livro que se rasgaram. Zafa olhou-o com ódio e falou-lhe transtornada:
” – Seu bruxo maldito, incompetente, idiota, veja o que você fez. Trate de consertar esta besteira ou se arrependerá amargamente”.
Em seguida, correu para a porta que dava para outro salão e saiu. Minaru, sozinho, ainda chacoalhava o corpo de medo, enquanto olhava pateticamente para o Rei. Este ficara de cócoras em um canto do quarto e agora emitia um som rouco e baixo. Aquilo, que eu não atinava o que era, foi demais para o cagüíra. Em desabalada carreira correu para a porta que Zafa usara apenas para saber que ela a trancara, voltou-se para a porta de entrada da câmara real e aos gritos abriu-a despencando-se pelo corredor. Neste momento Remo abriu os olhos e murmurou para mim:
” – Vamos agora, está tudo feito.”
Saímos rápido, deixamos o palácio e dirigímo-nos para o albergue. No caminho, Remo cantarolava e assoviava. Então perguntei-lhe:
” – Afinal, o que houve com o Rei?”
Remo parou, olhou-me com um semblante espantado e disse:
” – Como o que houve, você não viu?”
” – Bem…” – respondi timidamente – “eu o vi contorcer-se e tudo mais, mas me pareceu que os outros estavam vendo alguma coisa que eu não percebi.”
Remo “Audaz” Arranti soltou um “Hum!” prolongado e enigmático mas não me respondeu. Depois de chegarmos ao albergue e ordenarmos uma refeição, à mesa ele me disse:
” – Fale-me com toda sinceridade, Rufus, o que exatamente você viu.”
Contei-lhe detalhadamente. Então seu rosto ficou sério e ele falou:
” – Você, por algum motivo, não foi afetado pela magia. Durante a sessão, todos que estivessem ali, exceto eu, deveriam ter visto o Rei transformar-se numa horrenda criatura rastejante, um réptil com aspecto de sapo ou algo parecido, repugnante. Coloquei um círculo de força ao redor do Rei, de forma que, quem quer que seja, ao aproximar-se dele, o verá desta forma execrável, exceto se for um “dotado” muito poderoso e experiente. Mas este não é o seu caso, de forma que, ou algo saiu errado, mas o comportamento dos dois não me deixa dúvidas, ou você adquiriu alguma capacidade de resistir aos encantamentos, pois não o excluí das visões achando que apreciaria ver uma magia acontecendo. Vamos verificar isto mais tarde.”
A partir daí, eu mesmo rememorei inúmeros episódios semelhantes, mas sempre houvera pensado que fora uma proteção imposta por Tugut ou Abbas. Isto foi fundamental para a fundação da escola de magos e para minha vida .
Neste ponto, o Professor Raamos, visivelmente nervoso quase implorou para Rufus falar-lhe sobre a escola de magos.
Rufus terminou sua história com Remo, narrando-lhe que Zafa e Minaru foram acusados de terem enfeitiçado o Rei e imediatamente executados. Remo mandou Rufus embora com a recompensa mas resolveu ficar ainda um pouco para saborear sua fama, e este foi seu erro, apesar dos apelos quase dramáticos que Rufus lhe fez para partirem. Afinal tudo saíra conforme o planejado, até o momento em que Gimom VII de Toda Anuris, assim o antigo soberano de Anuris-Oeste passou a se intitular, viu o que fora feito ao irmão. Imediatamente ordenou que matassem Remo “Audaz” Arranti. O medo mais uma vez apoderava-se da alma daquele soberano obscuro e assim terminaram os dias de um grande mago.
– Voltei para casa – continuou Rufus Signis – em profunda melancolia. Eu não era amigo de Remo, era seu subordinado mas o longo tempo de convivência e a intimidade que acabamos por ter levaram-me a admira -lo. Sua perda fez mal ao meu espírito, ensombreceu-o. Cheguei ao meu lar e não senti conforto. Tugut e Abbas perceberam e me deixaram por uns tempos isolado com minhas cismas. Levei alguns meses vivendo sozinho nas montanhas, revendo minha vida, tirando minhas conclusões. Angústia e revolta assomaram-se de minha alma, desejei partir daquele lugar e retomar a vida longe de todo meu passado. Quem era eu afinal? Um “comum” em meio a seres excepcionais, alguém menor e insignificante. Queria o mundo dos “comuns” onde teria esperanças e planos para o futuro. Decidi comunicar minha decisão a Tugut e Abbas.
Aziz Ibn-Al Tugut ouviu-me por longo tempo, por fim, interrompeu-me e disse:
” – Compreendo perfeitamente suas razões. Não lhe pedirei para mudar sua decisão, no entanto, há duas coisas que quero que saiba. Em primeiro lugar, a fortuna de Remo Arranti é sua. Ele não tem parentes nem filhos ou quem quer que seja que possa reivindicar o espólio, você era seu único amigo, por assim dizer. Em segundo lugar, pretendo fundar uma escola para os “dotados”, alguma coisa que já planejara há muito. Contava com você para me ajudar, mas creio que posso modificar um pouco meus planos. Vá, mas mantenha-me informado onde estiver. Se algum dia mudar de idéia, apenas retorne, ficaremos contentes.”
Despedimo-nos algumas semanas depois, e eu parti.
– Por favor… – o Professor Raamos intrometeu-se na narrativa de Rufus – Naturalmente o senhor e Tugut discutiram mais detalhadamente sobre esta escola. Entenda-me senhor, são tão vastas as suas narrativas, e interessantes, que insisto em fixarmo-nos sobre a Escola. – Raamos fez uma pausa curta como que procurando as palavras e prosseguiu – As referências à Escola de Magos, nos documentos disponíveis são pouco claras e hoje os estudiosos do tema descrêem da sua real existência, portanto…
– Entendo-o perfeitamente Professor – ajuntou Rufus – e é exatamente por isto que estou lhe dando tantas informações, para que compreenda não só a origem do fato quanto as conseqüências advindas.
– Sim! – exclamou Raamos enfaticamente – o Senhor vê que para um estudioso isto é fundamental.
– Pois bem, claro que conversei com Aziz Tugut sobre o assunto – Esta assertiva de Rufus acalmou o Professor – e, como lhe dissera anteriormente, a experiência com Remo foi tema principal destas conversas. Abri meu coração com Tugut, e com Abbas também, e disse-lhes do profundo desgosto que vivia. Perguntei-lhe qual o sentido de possuir um dom, como Remo, e terminar daquele jeito. Remo Arranti não fora mais feliz com seus poderes, diria mesmo que, ao contrário, aquilo lhe trouxera a desgraça. Acompanhei Remo durante décadas e não vi em nenhum momento qualquer alegria genuína em seu espírito. Remo deixou-se levar pela cobiça e vaidade e nem mesmo a riqueza que angariou pode ser desfrutada. Remo desafiava a si mesmo, sempre querendo fazer algo mais grandioso, como se tentasse achar qual era o limite de seus poderes. E não apenas Remo se comportava desse modo.’Os “dotados” pareciam correr atrás de algo que não sabiam o que era. Felicidade? Compreensão? Amor? Aziz Ibn-Al Tugut então disse-me o que jamais pensei ouvir de um mago tão poderoso e vivido quanto ele:
” – Creio que você está certo. O que aconteceu com Remo não é absolutamente exceção. Posso lhe relatar dezenas de histórias parecidas e, ao relembra -las, sempre me faço estas mesmas perguntas, e não as consigo responder. Foi por este motivo que passei a recolher “dotados” e traze ê-los para cá. Tentsalvalvá-los deste destino trágico, mas creio que não é suficiente tê-los à vista ou dar-lhes um exemplo, uma filosofia de vida. E mesmo assim, que filosofia poderia lhes dar? Respeitam-me como um grande feiticeiro, temem a mim, mas não me amam e, de fato querem fazer algo que os torne tão famosos e temidos quanto eu. Elegem, por vezes, como paradigma justamente os mais estouvados e irresponsáveis. Creio que há algo que pode ser feito, mas não sei o que é. Por isso decidi pela escola. Será um lugar aonde poder-se-á influir mais diretamente na formação do caráter destes seres especiais, pois, caso contrário, os magos desaparecerão junto com sua arte.”
Aquilo surpreendeu-me, deixou-me confuso. Ao longo das semanas que se seguiram aquelas palavras reforçaram minha vontade de partir. Se os próprios magos não conseguiam resolver seus problemas, o que me restava fazer? No fundo de minha alma eu sentia que talvez fosse melhor mesmo que os “dotados” se extinguissem. O mundo não era para eles, eu estava certo, a terra era dos “comuns” e eu pertencia à maioria, apenas estava no lugar errado.
– Então, a escola foi fundada? – perguntou ansioso o Professor Raamos – e esta foi toda sua participação nela? – completou, antecipando uma certa decepção na voz.
– Oh! A escola foi fundada sim, – respondeu prontamente Rufus – mas minha participação nesta fase foi mínima.
– Então o senhor voltou.
– Isto é outra história… Permita-me, Professor, abusar de sua paciência mais um pouco, – o que fez com que Raamos suspirasse e condescendesse com a cabeça – Eu parti com o firme propósito de nunca mais retornar. Uma profunda frustração tomou conta de meus sentimentos, sentia que desperdiçara boa parte da minha vida servindo a pessoas egoístas e que, de um modo ou outro, me desprezavam. Ainda assim, a atitude de Tugut me sensibilizou. Ele me confidenciara suas dúvidas e demonstrara consideração. Havia Abbas, além de tudo, que entristecera-se verdadeiramente com minha decisão de partir, e eu a amava. Mas, fui-me embora. Não me estenderei no relato do que foi minha vida a partir daquele momento, apenas lhe digo que durante dez anos procurei gastar toda a fortuna que possuía como se fosse morrer no dia seguinte. O que o dinheiro pode trazer de prazeres e conforto eu obtive. Percorri quase todo o mundo conhecido e até algumas partes inexploradas. Não era um “dotado”, mas era rico. Travei amizades fúteis e sólidas e a estas últimas devo o fato de não ter dilapidado meu patrimônio. Tanto era o que possuía que após estes anos todos mal arranhara meus bens. Confiei boa parte de meus negócios a estes amigos sinceros que se encarregaram de multiplicar minha riqueza. Um dia, entediei-me de vagar pelo mundo, e aos poucos desfiz-me das influências frívolas e aduladoras. Outra vez mergulhei em grande melancolia, e me perguntava:
” – Afinal o que quero da vida?”
Aos poucos fui emergindo daquela depressão e então descobri que meu mal era a ignorância. Organizei minha vida, a partir deste momento, para buscar o conhecimento disponível no mundo onde ele estivesse. O dinheiro facilitou meus propósitos. Pude dispor dos melhores mestres e freqüentei as melhores escolas existentes. Mas, faltava-me o principal, um sentido para tanto empenho. Foi então que, passadas quase duas décadas dedicadas aos estudos,conheci Heinrich Zumpert.
Ao pronunciar este nome, Rufus percebeu que o Professor agitara-se ligeiramente na cadeira. Fez uma pausa na sua fala como que esperando ser interrompido. Raamos fez menção de falar mas conteve-se. Rufus ficou indeciso se continuava a falar, e por fim resolveu-se por interpelar o Professor:
– Este nome lhe é familiar, Professor?
Houve um momento de embaraço para Raamos mas este respondeu:
– Não…De fato não me ocorre conhece -lo.
Rufus podia sentir que não era inteiramente sincera aquela resposta, mas, julgou que o Professor ter-se-ia confundido.
– Zumpert era um conceituadíssimo filósofo, um sábio, e era também um “dotado”. – Continuou Rufus – Isto descobri logo nos primeiros tempos que o conheci, contudo, ele não deixava transparecer esta condição. Não toquei no assunto, mas, inevitavelmente, a questão veio à tona. Foi Zumpert quem revelou-se. Perguntou-me um dia:
” – Quem pensas que sou, Rufus?”
E eu respondi:
” – Um mago.”
” – Oh! ” – mostrou-se surpreso com a rapidez da resposta – “estás muito seguro disto, sinto.”
” – Meu pai é Aziz Ibn-Al Tugut”, “Kibir” Tugut.”
Zumpert fez uma expressão incrédula e ajuntou:
” – Não és um mago, logo…” – parou de falar, semicerrou os olhos e apontou-me um dedo como se fizesse um enorme esforço de memória, a seguir completou – ” … o ajudante de Remo Arranti!”
” – Exato “.
Heinrich Zumpert soltou uma sonora gargalhada. Era um homem muito bem humorado e ria-se da inusitada coincidência desse encontro. A partir de então nossa amizade só fez consolidar-se até ao ponto de Zumpert tornar-se meu guia espiritual. Mostrou-me sem leguléios toda sua mágica que somando-se à sua erudição tornava-o a criatura mais extraordinária que jamais conhecera. Perguntei-lhe uma ocasião:
” – Porque esconde sua condição? Não seria de valor para a ciência que seus poderes fossem estudados? ”
” – Os homens, e sua cultura, ainda não estão prontos para conviverem com o diverso deles mesmos. Meus poderes são inexplicáveis por hora, mesmo para mim, e serão vistos como uma ameaça. O medo e a ignorância são o tempero da intolerância e do preconceito, ora, tu sabes bem disto.”
” – Mas me referia aos sábios.”
” – Quem decide quem é sábio ? Outro sábio ? E quem qualifica este último ? Haverá um dia em que se estudarão os dons, aí então teremos um papel neste mundo, mas até lá…”
E fez um sinal de silêncio, com o dedo sobre a boca. Heinrich Zumpert contou-me como, durante anos, conviveu com os mais poderosos magos deste mundo, aí incluindo Tugut, a quem apreciava sobremaneira. Por meu lado contei-lhe a minha experiência, e as minhas angústias. O tempo foi passando, e percebi que aquela melancolia que me abatia por vezes, desaparecera; sentia-me feliz de fato. Zumpert possuía poderes excepcionais, mesmo para um mago, e era seu dom natural materializar imagens de pessoas ou lugares distantes. Fazia isto por pura diversão, o que aliás era o único motivo que o levava a praticar suas mágicas: divertir-se.
O Professor Raamos inclinou-se na cadeira, em direção a Rufus e, num tom muito grave, perguntou:
– O senhor está me dizendo que Heinrich Zumpert, um dos maiores magos que já existiu, praticava sua arte apenas para divertir-se?
Rufus teve então certeza que Raamos já conhecia Zumpert e interpelou-o a respeito:
– Então o Professor lembrou-se que conhecia Heinrich?
– Sim…mas responda por favor minha pergunta. – Raamos foi quase sisudo nesta reiteração.
– Oh! – exclamou Rufus com ênfase afirmativa – certamente, não tenho a menor dúvida. Não que tenha sempre sido assim, conforme ele mesmo me contou, mas desde que decidira abandonar sua identidade como mago.
Esta assertiva de Rufus fez com que Raamos ficasse estupefacto por instantes, e quando voltou a falar não pode disfarçar sua contrariedade:
– Então o senhor quer me fazer crer que um mago, não um mago qualquer, mas um dos grandes, um mago consagrado, uma legenda, decidiu tornar-se incógnito para simplesmente usar seus poderes em joguinhos de salão? Não posso crer nisto senhor Rufus!
Rufus mudou seu semblante tornando-o quase taciturno. Sabia o quanto era importante aquela entrevista e não poderia deixar escapar a oportunidade permitindo que o Professor Raamos desistisse de seus intentos subitamente. Lembrou-se que havia outras pessoas envolvidas naquele encontro, portanto acautelou-se nas suas palavras seguintes:
– Professor, eu tenho provas do que digo e poderei mostra -las se desejar. Como penso que já conhece alguma coisa da vida de Zumpert, permita-me lembrar-lhe que Heinrich Zumpert no auge de sua fama simplesmente desapareceu e nunca mais se ouviu falar dele. As histórias que circulam de que tivesse sido vencido em um duelo com outro mago é inverídica.
Raamos desta vez não se conteve e levantou-se. Seu rosto estava afogueado e sua voz embargada quando falou:
– Eu tenho…relatos fidedignos de que Zumpert sucumbiu neste embate!
– Então Professor não me diga mais nada antes que eu lhe revele o que Heinrich me contou – a voz de Rufus soou particularmente grave e decidida – depois, poderá julgar se o que digo pode ou não ser verdade.
Raamos sentou-se e concordou com um aceno de cabeça mas mostrava-se ainda visivelmente perturbado.
– Heinrich teve uma desavença com Pitris, de quem já lhe falei, algo que dizia respeito aos poderes de cada um. De início tratava-se apenas de um certo exibicionismo inconseqüente, até que um dia Pitris interferiu num trabalho de Zumpert. O fato é que um potentado contratara Heinrich para livrar seus rebanhos de uma praga lançada por um mágico contratado por um concorrente. Suas vacas pararam de dar leite e pareciam enlouquecidas. Zumpert estudou o assunto e descobriu que o autor da conjura havia sido Pitris. Procurou-o e comunicou-lhe que faria reverter o malefício. Ora, há uma certa regra entre os magos, principalmente os mais poderosos, de que se algum deles for capaz de reverter’um feitiço, aquele que o lançou primeiro não deve refaze -lo. Outro feiticeiro deverá ser chamado. Da mesma forma, quem serve a um senhor numa causa, não deve passar-se para a defesa do outro litigante. Ocorre que Pitris asseverara ao seu contratante de que a praga era irreversível, tão convencido estava de seus poderes. Heinrich, com uma certa facilidade cancelou o encosto, mas Pitris, tão logo Heinrich Zumpert virou as costas, refez o encantamento. Houve muito rebuliço na época entre os magos e Pitris foi advertido. Isto significava que ele não poderia mais trabalhar em qualquer assunto que Heinrich estivesse envolvido. No entanto, os “dotados”, apesar de tentarem se conduzir com uma certa ética própria, são criaturas muito inconstantes e Pitris muito mais ainda. Algum tempo depois Heinrich e Pitris voltaram a se enfrentar. não houve acordo e, o que deveria ser um serviço banal transformou-se numa batalha cruenta.
Neste ponto o Professor Raamos murmurou em voz baixa:
– Os fantasmas do castelo do Conde…
– Então o Professor conhece esta história… – emendou Rufus em um tom amigável e quase jocoso.
– Talvez sim, continue.
– Como dizia, o Conde contratara Heinrich Zumpert para verificar as aparições de um fantasma em seu castelo. Era um encantamento trivial, feito por um mago de poderes limitados, por encomenda da sogra do Conde, uma velha feia e muito rabugenta. Desfeita a obsessão, as coisas voltaram ao normal, o Conde ficou satisfeito, mas sua sogra, furiosa e inconformada. Tanto, que resolveu contratar Pitris por uma fabulosa quantia para criar uma nova e mais aterrorizante aparição. Pitris sabia que Heinrich Zumpert estava no caso e portanto não deveria aceitar o encargo, mas sua vaidade e ambição fizeram-no seguir adiante. Ele criou um fantasma muito poderoso e maléfico ao ponto de ter enlouquecido alguns criados do Conde. Este chamou Heinrich mais uma vez que, ao tomar pé da situação, procurou Pitris. Tentou demove -lo de continuar sua saga e em resposta Pitris acrescentou mais fantasmas ao castelo. Neste dia uma das filhas do Conde perdeu a razão. Zumpert, usando de toda sua genialidade reverteu o quadro, devolveu o tirocínio à moça e selou o castelo num círculo de força que impedia que os feitiços de Pitris ali penetrassem. Como brinde ao Conde, petrificou a sogra deste nas améias do castelo. Pitris, então já em pleno desafio a Heinrich Zumpert, cercou o castelo com os mais terríveis espíritos que pode invocar, vampiros, ogros e bestas infernais, de forma que era impossível entrar ou sair do castelo sem sujeitar-se àquelas anomalias. Alguns aldeões desavisados sucumbiram aos demônios, transformando o embate numa carnificina.
Nas aldeias vizinhas, ao saberem dos fatos, os populares fugiram, isolando mais ainda o castelo, que já sentia a falta de víveres; e o desespero tomou conta de seus inúmeros moradores. Heinrich numa conjuração brilhante criou um túnel através do anel infernal de Pitris e assim pode evacuar os moradores do castelo. Em seguida, num golpe de mestre, encarcerou as entidades fantasmagóricas no próprio castelo e meteu-se dentro dele. Submeteu-as ao seu poder, o que obrigava Pitris a ir até ele, se quisesse recuperar aquela magia, seqüestrada habilmente por Zumpert.
Pitris vendo que poderia ser dominado por Heinrich abdicou de recuperar seus demônios, perdendo assim considerável parte de suas forças, mas, ainda assim um feiticeiro poderoso, emparedou o castelo transformando-o num granito inexpugnável, selando o destino de Heinrich.
Rufus Signis olhava diretamente nos olhos de Raamos e pode acompanhar suas mínimas reações. Percebeu-o absorto em pensamentos longínquos, provavelmente relembrando onde obtivera sua própria versão destes fatos e comparando-a com o relato de Rufus. Num momento seguinte Raamos falou:
– A história é mesmo essa, embora com algumas nuances diferentes. Pelo que sei desde então nunca mais se ouviu falar em Heinrich Zumpert, até que o senhor me afirmasse o que há pouco disse sobre ele.
– Possuo um relato destes fatos escritos do próprio punho de Zumpert. – completou Rufus sobriamente.
– Acredito em sua palavra, mas diga-me, como Zumpert escapou?
– Zumpert não escapou do castelo.
Raamos arregalou os olhos incrédulo e balbuciou:
– Mas, não faz sentido…
– Ele transportou o castelo junto consigo mesmo para outro local e deixou uma miragem no lugar original. Ele previu o que Pitris faria e iludiu-o. Talvez tenha sido uma das maiores magias já realizada no mundo.
– Inacreditável… – sussurrou Raamos.
– Realmente – acrescentou Rufus, mantendo a atenção de Raamos – e depois disso, Heinrich Zumpert decidiu retirar-se do ofício.
– Mas porque? – agora o Professor demonstrava uma curiosidade quase suplicante.
– Pelo mesmo motivo que levou Tugut a criar a escola de magos e eu a abandonar meu passado. – Rufus disse esta frase de forma quase professoral e continuou a falar sem dar tempo ao Professor Raamos de interrompe -lo – E foi isto também que, mais tarde, fez a escola acabar e os magos egressos dela a extinguirem-se.
– Um dia – continuou Rufus – Zumpert materializou as imagens de minha cidade. Revi meus pais, ouvi-os e senti saudades. Perguntei a Zumpert porque nunca fizera tal materialização antes para mim e ele me disse:
” – Nunca pedistes.”
” – E porque agora? ” – redargüi -o.
” – Porque acho que tu deves voltar para casa. Creio que estás pronto para aquilo que Tugut lhe ofereceu, dirigir a escola de magos. Não me conteste, sabes bem o que digo. Perguntavas-me sempre qual a finalidade da sabedoria, e eu te respondo, agora que tens a mais alta cultura: a paz, a harmonia interior, o pleno domínio de seus poderes naturais. Por isto divirto-me com minha mágica. Ela me pode ser útil, mas não dependo dela para ser feliz, portanto, é dispensável. Vai ter com teu pai. Ele sabe que toda magia que possui não trará sabedoria aos seus pupilos. Tu levarás isto para lá.”
Neste momento, os olhos do Professor Raamos pareceram brilhar enquanto falava, interrompendo Rufus:
– Entendo agora seu propósito, senhor Rufus; sempre foi buscar uma forma de neutralizar os “dotados”, e de certa forma conseguiu…
– Talvez Professor Raamos – Rufus pressentiu que precisava achar as palavras certas – tenha havido esta coincidência de resultados, mas na ocasião nada disto me passava pela cabeça. De fato ressentia -me dos “dotados” e o exemplo de renúncia de Heinrich Zumpert reforçou a idéia de que era preciso conter os magos de algum modo; mantê-los em silêncio como Zumpert dissera. Por fim, voltei para casa e efetivamente Aziz Ibn Al-Tugut deu-me a direção da escola, e fez mais, convenceu-me a casar.
A noite já ia longe. Rufus Signis e o Professor Raamos perceberam então que haviam esquecido do jantar e já era hora da ceia. Chamaram o chefe do restaurante e encomendaram a refeição. Raamos comunicou a Rufus que contratara alguns serviçais para permanecerem após o encerramento das atividades do clube apenas para atenderem a eles, tal era o interesse do Professor no assunto. Assim, após a ceia, voltaram a conversar e apenas alguns empregados permaneciam no recinto. As luzes foram apagadas, exceto no salão onde os dois cavalheiros se entretinham.
Rufus sopesou o que havia dito e ouvido até o momento e, embora satisfeito com o resultado parcial, intuía que não tinha certeza das intenções do Professor quanto ao que este faria com a história depois de contada.
O relato do casamento de Rufus serviu como um entreato divertido, pois este revelou que nunca soubera se verdadeiramente se apaixonara por Iakki ou aquilo fora uma trama de Tugut e Abbas. Tiveram filhos, nenhum “dotado”, embora Iakki fosse uma feiticeira. Seu dom peculiar era com os elementos naturais, ar, água, fogo e terra. Viviam numa fazenda próxima da escola de magos e suas colheitas ocorriam o ano todo pois as estações não mudavam naquele local, graças ao talento de sua esposa. Chovia quando e onde ela queria e vez por outra, em ocasiões especiais, podiam apreciar tempestades tropicais. nevadas, pequenos furacões, raios e trovões em uma parte da propriedade, o que acabou constituindo -se numa atração da cidade.
” – As vezes, ” – dizia Rufus para sua mulher – “penso que deveríamos cobrar os ingressos para ver este espetáculo”.
Eram felizes, a escola aumentava continuamente a quantidade de alunos e Rufus dedicava-se totalmente às suas obrigações. Buscavam “dotados” por toda parte do mundo. No fim de alguns anos Rufus tinha catalogado a história de todos os magos vivos e mortos desde muitos séculos. Era um acervo imenso e extraordinário. Aziz Ibn Al-Tugut, conhecido como “Kibir” Tugut, morreu. Tempos depois, Abbas se foi igualmente. Rufus Signis, um “comum” era agora o grande mestre dos “dotados” da nova geração. Os resultados da escola começavam a aparecer. Os novos magos não aceitavam mais trabalhos de encomenda. As façanhas de outrora viravam lendas e não mais se ouvia falar dos temíveis feiticeiros de aluguel. Mesmo sua mulher, Iakki, que freqüentava a escola, parou com seus espetáculos meteorológicos. As estações voltaram a ocorrer normalmente na fazenda’e a única coisa diferente era a imensa produtividade da terra e dos animais. Rufus contava agora com a ajuda de seus ex-alunos na administração da escola. Acompanhavam a vida dos egressos e mantinham contacto permanente com eles. De tempos em tempos convocavam uma reunião geral, em princípio para confraternizarem, depois para traçarem estratégias. Os magos se ajudavam, favorecendo uns aos outros em busca de uma vida confortável em comunidades de “comuns” . Passaram inclusive a neutralizar aqueles mais antigos que ainda percorriam os países vendendo seus serviços. Rufus aos poucos foi percebendo o que estava acontecendo, os magos, como previra Zumpert, abdicavam da magia, optavam pelo silêncio existencial de seus poderes.
– Quando me apercebi disto, senti que a estratégia da escola precisava mudar. Havia tantos “dotados” já espalhados pelo mundo, que se negavam a exercer seus poderes e zelavam para que o silêncio fosse mantido, recolhendo eles mesmos as vocações emergentes e educando-as que a existência da escola não mais se justificava. Foi quando decidiu-se pelo fechamento transformando-a num ponto de referência cultural.
O Professor Raamos estava reclinado em sua poltrona numa atitude quase folgazã, com um sorriso nos lábios e a mão segurando o copo de conhaque fazendo seu conteúdo rodopiar velozmente. Rufus já não se sentia tão à vontade agora, talvez um pouco cansado daquela maratona, quando Raamos o interpelou:
– Rufus Signis, este seu plano foi verdadeiramente diabólico. Então, entendo agora porque desapareceram todas as referências sobre os magos a partir de um certo tempo. Digo as referências verdadeiras e não o misticismo ridículo reinante hoje em dia. Parabéns, meu caro, você, uma mente brilhante deveras, um mago senil como Tugut e um trânsfuga como Zumpert… ninguém poderia ter feito melhor para minar a confiança e o orgulho de um “dotado”, enfraquece -loisola lá-lcontrolaolá-lo faze azê-lo abdicar do seu mais precioso dom, a magia.
Rufus sentiu um arrepio correr-lhe o corpo. Manteve-se calado pois percebeu que Raamos continuaria a falar. O professor deu um longo suspiro, colocou o copo sobre a mesa, empertigou-se e dirigiu-se a Rufus numa voz gélida e metálica:
– Diga-me, você realmente acha que tem o controle de todos os magos do mundo?
Rufus tentava disfarçar sua apreensão. Sorriu um tanto desconcertado e procurou manter o rumo da conversa no mesmo tom anterior:
– Não posso afirmar categoricamente… Há apenas um caso que não tenho idéia…
Raamos moveu-se para a beira de sua poltrona com os punhos segurando o queixo e os cotovelos apoiados nos joelhos e cortou a palavra de Rufus:
– Sim?
– Pitris ! – exclamou Rufus numa voz baixa e trêmula.
O professor Raamos jogou-se para trás em seu assento, abrindo os braços e gargalhando:
– Rá! Rá! Rá! Rá! Rá! – o som alto e assustador encheu o salão. Neste momento, alguns serviçais, provavelmente atraídos pelo alarido, acercaram-se dos dois.
– Sim, Rufus Signis, Pitris. Eu! Pitris em pessoa!. – gritou estas palavras enquanto batia palmas.
Rufus percebeu então que o rosto do Professor Raamos, Pitris, modificava-se em um semblante que Rufus bem conhecia, era realmente Pitris. Lembrou-se então das conversas com Zumpert e Tugut quando falavam de Pitris. Ele era um “bruxo louco” como ficou conhecido. Após o episódio do duelo com Heinrich Zumpert fora banido do convívio com seus pares. Os magos o evitavam, por medo ou indignação. Pitris correu o mundo com sua magia perniciosa e cruel. Os magos faziam o que podiam para neutralizar seus encantamentos, mas, mesmo tendo perdido parte dos seus poderes para Heinrich, ainda assim era um dos grandes e seus malefícios nem sempre podiam ser revertidos. Pitris escondia-se e, com a força que tinha, encontra -lo era quase impossível. Tugut alertara Rufus:
” – Pitris será seu grande obstáculo, use de astúcia para supera-lo pois ele tem poderes formidáveis.”
Zumpert por seu turno avisara:
” – Pitris tem sede de vingança, quando souber como o enganei procurará revanche. Tive-o em minhas mãos. Poderia te-lo aniquilado o, mas para que? Ele jamais aceitará sua influência entre os magos. Pitris quer o lugar de Aziz Ibn Al-Tugut.”
Enquanto relembrava estes fatos alguns empregados do clube postaram-se ao lado de Pitris, e este então já inteiramente transfigurado falou:
– Veja, Rufus, seus ex-alunos, eles também querem um acerto de contas – e todos riram entreolhando-se – afinal, seu plano pífio foi por água abaixo.
O rosto de Pitris tornou-se colérico como sua voz. Já de pé, de braços abertos tendo Rufus pregado, imóvel na poltrona, acercou-se para junto ao rosto de Signis e vociferou:
– Você está acabado, velho miserável, ainda conta decerto com o apoio de uns feiticeiros imbecilizados pela sua filosofia barata. Mas daremos conta deles também. Você esqueceu que um feiticeiro tem uma alma especial, além da sua compreensão “comum” – disse-o com um tom de desprezo – e que quando sente o gosto do poder da magia, como a estes aqui os fiz sentir, não vão querer mais vegetar numa vida insossa e abjeta de um “comum”. Veremos agora se você realmente aprendeu a se livrar de um “encosto”.
Os olhos de Pitris pareciam perfurar Rufus. Este, começou a sentir sua pele esgarçar-se como se milhares de alfinetes o trespassassem. Sabia que deveria controlar o medo, ingrediente principal para a magia surtir efeito, mas tornava-se cada vez mais difícil manter a mente alerta. Transpirava abundantemente. Perguntou-se mentalmente que tipo de conjuração Pitris faria, e assim estava conjecturando quando suas entranhas começaram a revolver-se. Rufus entendeu por fim que Pitris lhe encomendara o pior dos suplícios que já tivera oportunidade de conhecer. Sua boca começou a abrir-se desmesuradamente, seus dentes voltavam-se para fora e afastavam-se uns dos outros. Sua língua projetava-se e uma pressão imensa vinha do interior de seu corpo como se seu intestinos quisessem sair pela boca. A dor era lancinante, indescritível, a pele descolava-se de sua face já disforme. Rufus estava sendo virado pelo avesso. Precisava resistir. O resto de sua consciência concentrou-se neste propósito e por um momento o processo parou. Pitris surpreendeu-se com a resistência de Rufus à sua imprecação. Pitris recrudesceu mas não obteve o resultado que queria. O corpo de Rufus inchava pelo tórax e abdomem e seus olhos afundavam-se no rosto. A dor perturbava o esforço de resistência, mas, ele tinha de agüentar um pouco mais. Pitris tremia-se inteiro no afã de juntar toda sua potência para virar Rufus do avesso, chegando a espumar pela boca. Os ossos de Rufus começavam a estalar, suas juntas torciam-se e respirar tornava-se cada vez mais difícil. O coração literalmente queria sair-lhe pela boca, agora uma massa disforme. Resistir, resistir ainda pensava com o que lhe sobrava de sanidade. Pitris caiu de joelhos ao chão, seu esforço era imenso e ele começava a cansar-se pois Rufus sentiu um pequeno alívio na dor. “Agora!” – pensou Rufus – “preciso de ajuda”.
O corpo de Pitris dobrava-se para trás e suas mão estavam fechadas com as unhas cravadas nas palmas. Começou a soltar um som baixo e grave que logo se transformou em um urro ensurdecedor. Ao mesmo tempo, o rosto de Rufus parou de deformar-se e aos poucos foi retornando ao normal. A dor parou e embora ainda ofegante, começou a mover-se na poltrona. Pitris ainda gritava, mas seu urro transformava-se em um lamento, um uivo de aflição. Rufus aprumou-se, ajeitou suas vestes desalinhadas, agora manchadas do sangue que vertera, olhou para seus ex-alunos que retribuíram o olhar com um movimento de reverência. Um deles falou:
– Ele está neutralizado, mestre Rufus.
Rufus levantou-se, passou a mão pelos cabelos brancos procurando arruma-los e postou-se a frente de Pitris, que agora calara-se, e imóvel, com os olhos arregalados fitava Rufus.
– Triste figura, Pitris – ouviu-se a voz calma de Rufus – seu orgulho e prepotência lhe derrotaram. Não lhe contei toda verdade, e nem tinha intenção de faze-lo, mas acho que , antes de decidirmos o que fazer a seguir, você deve sabe-la. A escola não foi extinta. Foi transformada num conselho. Um conselho de magos, permanente, com o propósito, não de terminar com a magia, mas preserva-la. Não sabemos o que é o dom. Mas seja o que for, faz parte da humanidade. Não há mais “dotados” e “comuns”, mas homens e mulheres com suas potencialidades. Entretanto, como Zumpert dizia, ainda não é a hora, portanto silenciemos. Mas ele não usava a magia apenas para divertir-se. Ele a usava como um ser humano responsável, coisa que você não é. Percebemos que tipos como o seu punham em risco nossos planos. Hoje os “companheiros” estão espalhados pelo mundo, fazendo coisas comuns, em empregos respeitáveis, mas têm muito mais poder do que jamais poderiam imaginar. Não há mais lugar para aventureiros do seu tipo. Em pouco tempo estaremos em condições de influir no destino dos povos e isto é uma imensa responsabilidade que exige sabedoria, algo que também lhe falta. Ademais, tentamos lhe dar tempo e a outros iguais a você, para que refletissem. Inútil. Portanto, precisavamos encontra-lo e neutraliza-lo. Fizemos esta armadilha, alguns dos nossos espalharam que estavam insatisfeitos com o conselho, daí, foi só aguardar. Desde o início sabia quem você era, e deixei-o conjurar-me para enfraquece-lo temporariamente enquanto o imobilizavam. Pitris, prepare-se para uma nova vida!
Pitris, aliás, Ruberval Ocardot levantou-se muito cedo e bem disposto. Serviu-se de um reforçado café da manhã, preparado pela sua velha e fiel empregada, arrumou-se e partiu para o trabalho. No caminho, enquanto a condução sacolejava, relembrou algumas passagens da sua infância pobre num orfanato e da sorte que tivera em ser adotado pelo seu Tio Rufus, que não só o criara como lhe arrumara aquele estável e promissor emprego de escriturário de uma seguradora.
“Sorte, muita sorte”, pensou, e agradeceu a Deus.