ONDE ESTÁ O DR. GRAÇA?
Luiz F M Lima
Os dias na repartição eram imutáveis; menos para Silas.
Desde que fora avisado que iria para Moscou a ansiedade assomara-se ao seu humor. D. Rosa entregou-lhe um envelope com as instruções de praxe; horário do vôo, dinheiro e nem mesmo um sorriso.
Aliada à ansiedade, a desconfiança ocupava espaço.
“O que estaria acontecendo nos altos escalões?”
A auto-imposição de silêncio incorporou-se ao seu cotidiano, regra de ouro que já o salvara de uma incômoda situação. Nem uma palavra em casa, nada de comentários com os colegas e, se pudesse, nem pensava no assunto.
Um memorando laconicamente recomendava roupas de frio.
“Onde consegui-las no verão tropical?”
Naquele mesmo dia, depois do expediente comprou um casaco, meias grossas de algodão e uma ceroula, por recomendação do vendedor.
“Quanto frio estaria fazendo em Moscou? Onde ficava exatamente Moscou?”
Os pensamentos voejavam em sua cabeça com as possíveis explicações para sua viagem. Não tinha a menor dúvida da importância daquela viagem. Acabara de chegar de Berlin e, sem que ao menos pudesse descansar, lá veio Moscou! Era óbvio que uma coisa decorria da outra, logo o problema que o levara a Berlin o levava a Moscou, mas, falava consigo mesmo:
- – Qual é este problema?
Havia outras certezas. O assunto era seríssimo. O seu desempenho na missão a Berlin fora impecável e o Dr. Graça confiava nele irrestritamente.
Ao chegar em casa com as compras, diante do olhar vagamente curioso de Antônia, sua mulher, e de seus filhos, resmungou alguma coisa ininteligível e guardou os pacotes debaixo da cama. À noite, Antônia, aproveitando o relaxamento pós-coito arriscou uma pergunta:
– ´Cê vai viajar outra vez, Silas? Foi o Dr. Graça que mandou?
– Dorme mulher, melhor não falar nestas coisas, é assunto da repartição.
Antônia calou-se, certa de que seu marido era uma pessoa cujas responsabilidades excediam o horizonte de conhecimentos dela. Ligeiramente contrariada, mas tentando demonstrar compreensão respondeu:
– Eu sei, meu nego, mas as crianças perguntam, né?
Esperou um tanto até que ele respondeu:
– Eu falo prá você alguma coisa na sexta feira. Até lá não toque mais neste assunto. Pro seu bem e dos meninos. Promete?
Antônia sentiu aquele aperto no peito que surgira quando Silas viajara para Berlin. Medo! Respondeu, contudo:
– Prometo!
Dormiram entre beijos e abraços.
Quinta-feira, ao passar no Departamento de pessoal para pegar o passaporte visado para Moscou, foi avisado que procurasse a D. Rosa. Pensou. “Há algo diferente no ar.” Dito e feito, D. Rosa, no seu ácido humor habitual, devolveu-lhe o passaporte comunicando secamente:
– Sua viagem foi cancelada.
Entregou-lhe um envelope, que continha um memorando e despachou-o do gabinete.
Pensava, de volta à sua escrivaninha, “Não foi o Dr. Graça que me comunicou pessoalmente o cancelamento, isto é altamente suspeito.”
Resolveu averiguar e, para que não houvesse chance de dar qualquer pista de sua desconfiança, trancou-se no banheiro. Boa providência, pois uma dupla de funcionários entrou no recinto para conversar, e não percebendo a presença dele comentavam:
– O bode velho do Graça foi chamado à Capital. Deve estar acontecendo alguma merda por lá, ele nunca sai daqui.
– É, mas a jararaca da D. Rosa continua aí, de plantão.
– Velha chata! Não sei como o Graça atura aquela bruaca.
– Deve ser parente.
– Porra nenhuma, o velho faz dela gato e sapato. Puxa saco.
– Tu viu o Silas? Duas viagens seguidas.
– Será parente?
– Porra nenhuma, é outro puxa saco, só faz o que o chefe manda.
Aquele diálogo revelou-lhe os detalhes que faltavam e confirmava todas as suas suspeitas. O Dr. Graça obviamente não sabia do cancelamento de sua viagem, pois nem na repartição estava. ” D. Rosa.” Quase gritou. ” Quem senão ela estaria em melhor posição para espionar a repartição? Pérfida!”.
Passados alguns instantes vieram-lhe à mente outras conclusões. “O bando infiltrado na repartição tirou o Dr. Graça do caminho chamando-o à Capital. D. Rosa cancelou minha missão por conta própria. Tanto ele quanto eu estamos em perigo.”
À noite avisou a Antônia:
– Você e as crianças vão pro sítio da tia Zezé, em Piabetá.
– E a escola?
– Dá uma desculpa. É prá proteção de vocês. Não posso falar mais nada. Confia em mim.
Antônia, com o coração repleto de angústia, aceitou as ordens do marido. No íntimo perguntava-se em que estaria metido aquele homem. Vinham tendo uma vida pacata há anos. Pobre, porém calma, voltados para a família, sem sobressaltos. Fora isto, a bem da verdade, que Antônia sempre esperara da vida; uma casinha no subúrbio, filhos e um marido dedicado. Há anos que acendia velas para os santos agradecendo a vida que Deus lhe dera. Agora, o que acontecia? O marido envolvido em transações obscuras e pondo a família em perigo. Teria a ambição levado seu homem a envolver-se com o crime e a corrupção? Não ousava, no entanto, perguntar ao marido o que realmente estava acontecendo. O dinheiro estrangeiro que por acaso vira na carteira dele confirmava suas piores suspeitas. Passou desde aquele momento a rezar fervorosamente para que sua vida voltasse ao que era antes. Resignada, preparou as malas para viajar.
No dia seguinte, sexta-feira, de madrugada, embarcou a família e foi para a repartição, chegando mais cedo do que todos. Os funcionários foram aparecendo aos poucos até que as salas se enchessem. Não havia sinal de D. Rosa. A curiosidade de todos aumentava à medida que o expediente corria. O que teria havido? D. Rosa jamais faltava, quando muito se atrasara um par de horas em todos aqueles anos. Os mais antigos lembravam-se que ela faltara por duas vezes, para ir ao enterro do pai e depois da mãe.
Silas ouvia e confirmava, a cada momento, suas suposições. D. Rosa era um elo importante naquela conspiração. A ausência da secretária ao trabalho era a prova, mormente quando se sabia que nos altos escalões grassava a cizânia.
O dia transcorreu eivado de rumores inquietantes, e por isto mesmo Silas decidiu sair mais tarde. Disfarçou o quanto pode sua demora em retirar-se no horário habitual, até que, praticamente sozinho na repartição, circulou pelas alas, tendo pensamentos crescentemente perturbadores, e terminou sentado à mesa de D. Rosa, onde dominado por irresistível curiosidade pôs-se a vascular o móvel. Quase ao mesmo tempo o telefone tocou. Seu coração acelerou enquanto decidia se atendia ou não ao chamado. Atendeu, por fim, com uma voz soturna:
– Alô.
– Alô, D. Rosa, por favor.
– Não está.
– Com quem eu falo?
– Que deseja?
– Aqui é da agência de viagens. A D. Rosa ficou de mandar o pedido de passagem do Dr. Graça, mas até agora não chegou. A viagem é amanhã e o Dr. Graça ligou-nos dizendo que vai direto para o aeroporto e pediu que levássemos o bilhete até ele. Posso mandar um funcionário aí pegar agora o pedido?
Silas sentiu aquele conhecido calafrio percorrer-lhe as costas, enquanto ouvia a notícia da viagem do Dr. Graça. Seus olhos percorreram a mesa de D. Rosa até encontrarem em cima de uma pilha de papéis um envelope pardo escrito – “Dr. Graça”. Era aquilo, com certeza do que falava o funcionário da agência de viagens. Abriu o envelope e lá estava o pedido de passagem onde se lia o destino, Berlin.
– Berlin! – murmurou Silas.
– Como? – respondeu a voz ao telefone – Berlin? Sim, Berlin, a não ser que tenha havido mudanças. É só acrescentar no pedido. Podemos mandar o funcionário?
– Sim.
– Obrigado, ele chega já aí. ‘Té logo.
Silas já percebera toda a trama. “Dr. Graça está prestes a cair numa cilada. Ele não sabe do cancelamento da minha viagem. Terá consciência da traição de D. Rosa? Preciso fazer alguma coisa”. Olhou todos aqueles papéis e teve uma idéia que lhe pareceu genial.
Algum tempo depois o funcionário da agência apareceu e levou o envelope com a requisição das passagens. Silas foi para casa com a alma cheia de apreensões. No quarto vazio, passou a noite insone, e ainda de madrugada foi para o sítio da Tia Zezé, em Piabetá.
Dr. Graça saiu da reunião preocupado com o horário, pois precisava embarcar para Berlin. Havia outro motivo para preocupação, a ligeira náusea que sentia e, vez por outra, a vesícula dava sinais com pontadas dolorosas.
Suas preocupações com o horário dissiparam-se quando o avião decolou. O serviço da agência de viagens fora impecável. Tão logo apontou no desembarque fora recebido pelo agente da empresa que se encarregou de todos os detalhes para o vôo internacional. Aproveitando o tempo que dispunha, Dr. Graça comprou alguns remédios digestivos, pois a náusea aumentava e as pontadas recrudesciam. “Deve ter sido o mocotó que comi ontem a noite”- pensava – “ou teria sido o torresmo do almoço?”
O vôo até Frankfurt decorreu sem anormalidades, exceto pelas cólicas que com freqüência cada vez maior acometiam-no. Nestas ocasiões a náusea aumentava, seu rosto empapava-se de suor e se pudesse se ver notaria a extrema palidez de seus lábios. O incômodo da situação aumentava devido ao exíguo espaço oferecido pelo assento da aeronave aos rotundos 140 Kg dele, mesmo se tratando da primeira classe. O ambiente não era propício às emanações dos gazes intestinais que seguiam-se às cólicas, mas, o que fazer? “Não se pode lutar contra a natureza” justificava-se mentalmente.
Na chegada a Frankfurt a empresa aérea providenciou sua conexão, não só porque pedira, ainda em vôo, mas por terem notado o estado deplorável em que ele estava. Aproveitando-se do tempo útil que ganhara, Dr. Graça procurou recompor-se no banheiro do aeroporto. Melhorou um pouco sua aparência, mas as dores eram constantes. Tomou mais remédios e terminou ressonando na sala de espera, até ser acordado pela atendente que, sorrindo, deixou-o acomodado no avião. As cólicas e o enjôo tiraram completamente o ânimo do Dr. Graça, de tal modo que recusou a refeição de bordo, limitando-se tomar alguns copos de vinho. A meio caminho de seu destino uma dor insuportável acometeu-lhe sobrevindo vômitos. O seu estado francamente enfermo não passou desapercebido pela tripulação que, numa língua estranha pediam o auxílio de algum médico que porventura estivesse a bordo. Alguém apareceu e num inglês trôpego tentou comunicar-se com um Dr. Graça quase inconsciente. O piloto foi informado da gravidade da situação e comunicou-se com o aeroporto, pedindo uma ambulância na chegada.
Dr. Graça, assim, desembarcou em Istambul, na Turquia, indo direto para um hospital, onde foi operado de urgência, sendo-lhe extirpada uma vesícula pedregosa.
Dois dias depois, na segunda-feira, ainda desorientado, Dr. Graça se perguntou mentalmente: “Aonde será que estou?” a equipe médica do hospital era muito prestativa, mas terminara o dia e ele ainda não havia conseguido obter uma resposta. Na terça-feira, no fim da tarde, após uma exaustiva conversa com uma enfermeira inglesa, exclamou em voz alta, sem obter qualquer resposta:
– Mas como na Turquia?
Quarta-feira, D. Rosa não aparecera até aquela data. A repartição vivia um clima agitado, sem a presença do chefe e de sua principal bedel. Os costumes comedidos, impostos pela dupla, se perdiam rapidamente e, à medida que as vozes aumentavam de tom, os processos se empilhavam e as piadas circulavam nos grupelhos que se formavam aqui e ali. Desde o dia anterior que o expediente terminava mais cedo, exceto para Silas que continuava chegando antes de todos e saindo por último. Havia outros motivos para este comportamento. Ele era o único que, em sua opinião, ali na repartição, sabia o que estava acontecendo. Temendo que houvesse algum sicário de D. Rosa imiscuído entre os funcionários, incentivando a desorganização com o intuito de abrir caminho para os inimigos, ele desligou no painel central os telefones de D. Rosa e do Dr. Graça, deixando apenas os ramais funcionando. Isto dificultaria a comunicação dos seus adversários, dando mais tempo ao Dr. Graça de safar-se dos seus perseguidores. “Vão ter uma surpresa, estes canalhas”, pensava Silas. Ficava imaginando que o Dr. Graça ao ver a mudança de roteiro deduziria o porque. Era só ligar os fatos. Estaria neste momento descobrindo a traição de D. Rosa. Era uma decepção, mas por outro lado seria uma satisfação saber que Silas cuidara dele e retribuía a confiança da qual era depositário.
Na sexta-feira, em meio à balbúrdia da repartição, a notícia caiu como uma bomba:
– D. Rosa morreu! Foi encontrada em casa, pelos vizinhos, que chamaram os bombeiros e a polícia, por causa do mau cheiro e das moscas. Quando arrombaram a porta lá estava ela, pelada, esticada, inchada, mortinha da silva…
O relato da funcionária ia adicionando detalhes macabros que, quando recontados por outros, se lhes aumentavam as nuanças mórbidas. Silas incluía cada informação no quebra-cabeça que aos poucos desvendava a imensa conspiração na qual estava envolvido. “Queima de arquivo”, concluiu mentalmente, “eles não queriam que ela, quando fosse presa, confessasse suas intenções amorais. Isto quer dizer que já devem ter descoberto a mudança de rota do Dr. Graça e o fracasso do plano de D. Rosa. Espero que o chefe esteja em segurança.”
O corpo de D. Rosa permanecia no necrotério público a espera de alguém que se responsabilizasse por ele. Nenhum parente fora localizado, ninguém reclamara o corpo. Na terça-feira o ambiente da repartição era de festa, apesar da notícia do óbito, e pela primeira vez em décadas os aniversariantes do mês comemoraram. Silas juntara-se à comemoração, apesar de considerar um desrespeito, mas não podia levantar qualquer suspeita de que era um agente do Dr. Graça, ademais, embora por motivos outros, D. Rosa merecera este fim.
– O Dr. Graça, alguém avisou a ele?
– Já devia ter retornado, tem onze dias que viajou. Nunca demorou tanto.
– Deve ter sabido da morte de D. Rosa e, tadinho, ‘tá abalado.
– Hei! – gritou alguém – Quem sabe onde está o Dr. Graça?
– Foi levar D. Rosa pro inferno! – Respondeu uma voz na multidão.
A gargalhada foi geral, a descompostura assumira seu posto na repartição, o que era um péssimo sinal no entender de Silas. Movido por sentimentos contraditórios de humanidade e vingança, naquele mesmo dia Silas foi ao necrotério autorizar o enterro.
Na quarta-feira pela manhã havia cinco pessoas ao pé da cova de D. Rosa. Dois coveiros, Silas e dois desconhecidos de terno e óculos escuros. Não se falaram. Quando retornou à repartição deu conta aos colegas do que fizera. Apesar de considerado um tipo esquisito, aquele gesto humano calou os rumores, ele fizera o que era correto para um cristão fazer.
– O Silas é, afinal, uma pessoa boa.
À tarde, quase no fim do expediente correu a notícia que alguém da direção central viera à repartição assumir o lugar do Dr. Graça e estava entrevistando alguns funcionários. Silas foi chamado por D. Ritinha, a ocupante do lugar deixado vago por D. Rosa. Não podia haver contraste maior entre o que fora a velha megera e a loura oxigenada, de mini-saia à sua frente anunciando:
– O Dr. Januário vai recebê-lo agora, Silinhas.
A sala do Dr. Graça estava na mesma penumbra de sempre, mas havia uma diferença no ar, o cheiro de cigarro. À sua frente, sentado na cadeira do Dr. Graça, tendo ao seu lado, de pé, o outro, estavam os dois indivíduos de terno e óculos escuros que compareceram ao enterro de D. Rosa. Os alarmes mentais de Silas dispararam: “Estou em apuros. Preciso ter calma”. O tal sentado dirigiu-lhe a palavra:
– Eu sou o Dr. Januário e este aqui é o Dutra. Você é o Silas, não é?
– Sim.
– Você não estava no enterro da D. Rosa, hoje pela manhã?
– Sim.
– Era amigo dela?
– Apenas de trabalho.
Houve um silêncio momentâneo enquanto os dois engravatados trocaram olhares. Dutra falou:
– Porque o Sr. foi ao enterro? D. Rosa, pelo visto, não era muito estimada.
– Fiz a obrigação de um cristão, quanto aos outros, não sei.
Novos olhares, e Dutra continuou perguntando:
– Há quanto tempo a conhecia?
Silas percebeu que aquilo era um interrogatório. Era de se esperar, tendo em vista as circunstâncias da morte de D. Rosa; para não falar dos envolvimentos políticos maiores. Respondeu depois de fingir que puxava pela memória:
– Talvez uns quinze anos.
Mais um interregno silencioso, o telefone tocou e o Dr. Januário murmurou para o companheiro:
– Pode deixar comigo Brotoeja… Dutra! Eu atendo.
Enquanto Januário falava baixo ao telefone e já acendia o segundo cigarro desde que Silas entrara, Dutra, mais conhecido como “Brotoeja”, continuava o interrogatório:
– Você notou alguma coisa diferente no comportamento de D. Rosa ultimamente?
Os olhos de Silas piscaram mais rápido. Aquela era uma pergunta capciosa. Claro que notara algo diferente. Silas sabia de tudo e aqueles dois sabiam que ele sabia, então porque da pergunta?
– Ela me parecia normal.
– Não percebeu nada mesmo… mais irritada, distraída, qualquer coisa?
– Não senhor, não notei nada. Havia algo errado com ela? – Arriscou Silas.
Brotoeja retirou os óculos escuros, aproximou-se de Silas e falou:
– Talvez, ela trocou os vôos do Dr. Graça. Ele foi parar na Turquia, coitado, e só conseguimos localiza-lo ontem. Imagine só, internado num hospital em Istambul.
A notícia fez Silas empalidecer. “Então”, pensou, “um atentado, eles tentaram mata-lo”.
Neste momento Januário desligou o telefone e falou para os dois:
– Ele foi operado e está fora de perigo. Não há previsão de alta. A embaixada está cuidando de tudo… E então? – finalizou olhando Silas e meneando a cabeça. Brotoeja, olhando Silas respondeu:
– Nada, não notou nada.
– É, mas a velha já devia estar com problemas. – Virou-se para Silas e mostrou-lhe a requisição de viagem onde constava a conexão para Istambul, que ele mesmo, Silas havia feito – Vê se pode, trocar Berlin por Istambul… só podia estar delirando.
Silas tentou sorrir, mas não conseguiu. Postou-se da forma mais conveniente que podia para disfarçar seu nervosismo; suas pernas tremiam. Januário continuou falando com Silas:
– Não vou lhe reter mais, Sr. Silas, só lhe peço que seja discreto com relação ao estado do Dr. Graça e o caso da D. Rosa, sabe como é, né? Evitar o falatório, he, he!
Silas arriscou mais uma vez uma pergunta, numa ousadia desconhecida até por ele mesmo e refletindo sua opinião, agora favorável, sobre seus dois interlocutores:
– O Dr. Graça continuará como chefe?
Januário deu uma risadinha e acrescentou:
– Claro, aquele velho ainda vai nos enterrar a todos, pode ter certeza, enquanto isto eu vou substituí-lo. Espero contar com a sua colaboração e discrição. Certo, Silas?
Silas teve certeza então que estava entre amigos e por conseqüência, concluiu, estavam confiando nele como um parceiro. Respondeu:
– Às ordens, chefe. – e saiu da sala. Não disse praticamente nada durante as três semanas seguintes, nem mesmo à sua mulher, que voltara de Piabetá com as crianças. Ouvia todas as versões que circulavam na repartição:
“Eles eram amantes, ela morreu e ele de tão triste teve um enfarte”.
“A mulher do Dr. Graça mandou matar a D. Rosa e deu um tiro nele”.
“A velha foi estuprada por um anormal antes de morrer”.
“Ele não deu a mínima prá D. Rosa. Nem interrompeu as férias na Grécia”.
“O Graça e a D. Rosa se meteram numa encrenca. Ela se matou para não denuncia-lo”.
“Que trouxas”, pensava Silas, mas sempre que lhe perguntavam alguma coisa respondia:
– Prá dizer a verdade, eu não sei de nada.
Uma segunda-feira, depois de quase um mês de ausência, o Dr. Graça voltou à repartição. Estava quinze quilos mais magro, embora ainda gordo, um tanto abatido e pálido. Passou pelos funcionários na forma habitual, calado. D. Rita, a secretária loura, fora substituída por D. Vilma, uma sexagenária discreta, que chamou Silas ao gabinete, no fim do expediente:
Dr. Graça quer falar-lhe.
Incontinente Silas compareceu e entrou no escritório do chefe mal disfarçando o orgulho e satisfação que sentia, e disse naquele tom que sintetizava toda a cumplicidade da situação:
– Às ordens, chefe!
Dr. Graça, sem ao menos olhar para ele, após um brevíssimo silêncio, disparou:
– Você vai para Pequim, Silas.