ROMÆ SIMILITER ROMANIBUS

Luiz F M Lima

Oliveira  terminara de ler o memorando do Dr. Graça, onde estava escrito a ordem para sua viagem a Roma, quando o telefone tocou. Era Cacildinha, sua mulher, que pela terceira vez no dia ligava para a repartição:

– Alô… Ah! Amor é você de novo… Sim, Cacildinha querida… Eu também … Beijinhos … Tchau coração.

Oliveira suspirou, revirando os olhos, como sempre fazia a cada chamada de Cacildinha. Acendeu seu vigésimo cigarro – e não era ainda meio-dia – e pôs-se a preparar a viagem.

À noite, em casa, no leito, usando toda diplomacia que podia comunicou a Cacildinha sobre a viagem:

– É uma oportunidade imperdível para minha carreira. Lá estarão os representantes de todo o mundo. É uma vitrine, onde os mais proeminentes peritos se mostram e eu serei um deles.

– Que bom, queridinho… E quando vai ser isto?

– Daqui a duas semanas. Vou num sábado e volto no outro. É rápido.

Houve um breve silêncio e neste átimo Oliveira sentiu que, mais uma vez, teria de enfrentar alguma restrição da parte dela. Não deu outra:

– Ih, amor! – disse-o num tom artificialmente preocupado – Não vai dar não, é aniversário da Isilda e ela faz questão de nossa presença. Se nós não formos ela jamais perdoará.

– A Isilda vai entender e ademais você me representará.

– Ah! Isso não! Eu não vou ficar lá, sozinha, afinal eu tenho marido. Se você não for eu também não vou e a desfeita será grande.

– Eu sei, minha flor, mas é um seminário internacional, tem uma programação oficial e eu não posso deixar de ir.

– Ora, vai! Eu só disse que se você não for à festa eu também não vou, porque serei eu que terei de dar explicações para todos. “Porque seu marido não veio?”. Aliás perguntarão com razão porque num momento tão importante para a família você prefere o trabalho.

– Não é bem assim, minha doçura. Esta é uma situação excepcional, algo importante para mim, para nós, porque pode significar uma promoção, um aumento de salário.

Cacildinha, já amuada, levantou-se da cama inteiramente preparada para mais uma cena de voluntarismo em que se especializara todos estes anos. Cruzando os braços sobre a transparente camisola de rendinhas e andando ao pé da cama, virando-se provocantemente para Oliveira disse:

– Eu não digo pra você não ir, já que é tão importante assim, só que eu não estou disposta a passar a vergonha de ter de andar sozinha quando todos irão acompanhados. Tudo bem para mim se você não quer convivência com minha família, é seu direito, mas eu também tenho minha opinião sobre esta sua atitude de hostilidade.

Oliveira já estava acostumado com estes rompantes e nem prestou atenção ao conteúdo das palavras da esposa. Seus olhos fixavam-se nos peitos fartos de Cacildinha e nos contornos de suas coxas e quadris sob a transparente camisolinha, pensando que ela poderia falar menos e dedicar-se a outros afazeres conjugais. Tentando interrompê-la e mudar o rumo da conversa perguntou:

– E qual é a sua opinião?

– Ah! Quer saber, né? – enquanto ajoelhava-se na cama numa atitude estudada e lasciva que tinha certeza atrairia o olhar de Oliveira para os seus peitos – Pois acho que é muito egoísta de sua parte não retribuir a consideração que minha família tem por você, e nisto eu me incluo.

Oliveira avançou a mão e passou-a nos seios da mulher, que desvencilhou-se ajeitando a alça da camisola de modo a que eles pulassem mais ainda para fora, e exclamou:

– Pare com isso, eu estou falando sério. Você não parece entender a importância desta data. Isilda é minha irmã mais velha e vai fazer 50 anos. É uma idade simbólica, pois estará entrando na terceira idade e precisará de todo nosso apoio.

– Meu amor – Oliveira já espalmava as duas mamas de Cacildinha e pelo entumescimento dos mamilos, fazia certo em seguir agindo daquele jeito – Não há nada que eu não faça por você. Eu vou ao aniversário da Isilda, que se dane o congresso, o aumento de salário, a promoção.

Oliveira a esta altura já envolvera Cacildinha num abraço e com incrível agilidade a despira de suas diáfanas vestimentas. Houve ainda um arremedo de resistência da parte dela, o que não sendo uma hipocrisia completa, não era decerto uma recusa sincera. Enquanto cavalgava Cacildinha, Oliveira jurava, entre resfolegos, que faria qualquer coisa por ela desde que pudesse continuar usufruindo daquele recôndito quentinho. Cacildinha, aproveitando-se da ocasião, como sempre, fez o marido prometer coisas inenarráveis.

No fim de semana, como de hábito, foram almoçar na casa do “seu” Pepe e D.Nina, pais de Cacildinha. Isilda estava lá com a família.

A rotina dominical transcorreu inalterada exceto pelo assunto novo, a viagem de Oliveira. “Seu”Pepe, sapateiro aposentado e ex-combatente da FEB na IIª Guerra, rememorava, privadamente, para Oliveira as delícias femininas da Itália:

– As italianas são uns vulcões. Nunca fui tão bem servido. Aliás tinha uma, a Concceta que era especial. Pensei até em casamento, eu juro. Ela escreveu para mim depois da guerra, mas eu já estava noivo da Nina. Um dia ela achou as cartas e jogou-as fora. Eu fingi que ficara zangado mas de fato já até tinha esquecido a italiana.

– “Seu” Pepe, a Cacildinha não quer que eu vá por causa do aniversário da irmã.

– Como? Esta menina ficou doida?

D. Nina, junto às filhas, discorria sobre o mesmo assunto:

– Cacildinha, minha filha, você não pode exigir isto do Oliveira. Não se joga fora uma oportunidade desta, assim sem motivo.

– E se for pelo meu aniversário – Completou Isilda – Não precisa se preocupar, é claro que eu entendo perfeitamente que o Oliveira não vá, ainda mais por um motivo deste.

– Eu já me decidi – falou Cacildinha aparentando contrariedade – Se o Oliveira não vier ao aniversário, sozinha é que eu não venho.

– Que tolice filha. Seria uma grosseria com sua irmã, não é, Isilda?

– É sim, Cacildinha, o que você quer provar com isto? Parece que tem inveja do Oliveira.

– E se eu tiver, qual é o problema? – respondeu cacildinha acrimoniosamente..

– Então é isto mana. Ora porque não vai com ele?

– Isto mesmo filha, o Oliveira com certeza adoraria.

Cacildinha fez uma careta de desdém que mal disfarçava a alegria pela idéia. Dali em diante as três passaram a planejar a viagem. Isilda sugeriu:

– Assiste  o “Candelabro Italiano”, lembra do filme? Que romântico! Vocês poderiam repetir o roteiro.

– E tome muito cuidado com as italianas – acrescentou D. Nina – elas atacam os homens, ainda mais um bonitão como o Oliveira. Eu já contei prá vocês como taquei fogo nas cartas de uma sirigaita que seu pai conheceu na guerra?

Enquanto pela enésima vez D. Nina contava sua desdita epistolar, “seu” Pepe traçava uma estratégia de ação com o Oliveira, e dizia:

– Oliveira, a Cacildinha sempre foi teimosa e se ela está fazendo esta cena é porque quer ir com você. Eu, no seu lugar, convidava ela.

– Mas, “seu” Pepe, a passagem, o hotel, é muito caro e depois eu não poderia dar atenção a ela, vou estar totalmente envolvido com o congresso. O Sr. sabe, a Cacildinha não faz nada sem que eu esteja por perto, já pensou?

– Você pode ter razão nisto mas lembre-se que é uma espécie de salvo-conduto pro futuro. Ela pode aborrece-lo muito mais se não for. Pense nisto.

“Seu” Pepe também pensava nele mesmo e estremecia com a possibilidade de ter uma Cacildinha mau humorada enfiada em sua casa por uma semana. Ele conhecia bem a filha que pusera no mundo.

As três mulheres já iam longe imaginando como seria a viagem, repleta de recepções em palácios e visitas importantes, como o Papa por exemplo.

– Eu quero ver o Papa – asseverou Cacildinha.

– Mas é claro, ir a Roma e não ver o Papa…

– A Isaura, minha vizinha, tem até retrato com o Papa, eu já vi; e autografado, com uma benção à família. Ela pôs na parede da sala, do lado da Santa Ceia. Já pensou, que lindo! – continuava, sonhadora – Um retrato meu e do Oliveira com o Papa? Como foi que a Isaura conseguiu isto?

– Ora, uma audiência. Tem que ter prestígio, é claro, mas o Oliveira vai numa missão oficial da repartição e a embaixada pode conseguir uma audiência para vocês.

– Com certeza. – Complementou Isilda.

– Mas, e se o Oliveira não quiser me levar?

– Nem pense nisto, filha! O Oliveira te adora. Não viu que até iria desistir da viagem por tua causa. Fala com ele que ele topa.

O domingo terminou em grande alegria quando Oliveira, a frente de todos, convidou Cacildinha para acompanha-lo até Roma. “Seu” Pepe até arriscou uma frase:

– Quem tem boca vai a Roma!

 

Os dias seguiram-se e os preparativos para a viagem também, e com estes, as despesas. Oliveira via com crescente aflição suas economias diminuírem diante da febre de consumo que se abateu sobre sua casa. Não fazia idéia que uma curta e simples viagem desse tantos gastos. “Seu” Pepe lhe dizia que era mais prudente não discutir o assunto e advertia:

– O salvo-conduto, Oliveira….

D. Nina e Isilda praticamente se mudaram para a casa de Cacildinha. Havia muito a fazer: costureira, compras, planejamento dos passeios, etc. Isilda fez uma lista dos pontos turísticos e passeios que as amigas recomendavam. O filme “Candelabro Italiano” rodava no vídeocassete ininterruptamente, passando e repassando os pontos principais.

– Será que o Oliveira vai alugar uma motocicleta que nem essa do filme? – perguntou-se em voz alta, Cacildinha.

– Lambreta – corrigiu Isilda – chama-se Lambreta, e era coisa de transviado.

– Ih! O Oliveira detesta viado – completou Cacildinha.

–  Transviado – Isilda era didática – é um pouco isso. Tarado seria mais adequado.

– Mas hoje – ajuntou D. Nina – tem carro prá alugar, muito melhor.

– É isso. Vou pedir ao Oliveira que alugue um carro daqueles de dois lugares, conversível, vermelho.

– Tira foto.

– Claro! Aliás, preciso comprar filme. Quantos levo?

– Uns dez rolos de 36 poses.

– Melhor uns vinte…

A programação de atividades sociais crescia e juntamente o guarda roupa necessário parta atender a tantos compromissos. Relacionados, havia os acessórios e os instrumentos para manutenção de tal aparato de modo que, uma coisa levando a outra, já eram oito malas grandes, só de Cacildinha. Oliveira procurava encarar aquela movimentação com um certo distanciamento, mas as contas a pagar não lhe permitiam tal alienação:

– Cacildinha – falou Oliveira, há dois dias de partirem – vamos ficar só uma semana e há o limite de peso no avião.

A mulher sorria e dava respostas evasivas, o que aumentava a preocupação de Oliveira.

Finalmente, o dia do embarque.

Foram necessários três carros de passeio para levar as pessoas e um furgão para a bagagem. O bom humor era grande até o momento em que Oliveira vendo a fila de malas prontas para serem embarcadas, o peso correspondente e principalmente o preço que teria de pagar  pelo excesso, tomou uma atitude que protelara até então:

– O que diabo – parecendo muito zangado – você está levando nestas malas!

Houve um pequeno tumulto no balcão de embarque enquanto Oliveira obrigava a mulher a desfazer-se de alguns itens revelados: um ferro elétrico, uma pequena tábua de passar roupas, uma máquina de costura portátil e uma mala cheia de mantimentos, para não falar nos vestidos, mantas e travesseiros. Cacildinha apesar de iniciar um pequeno escândalo, dizendo que não iria mais, logo percebeu que tal atitude não lhe traria grandes vantagens e aquiesceu muito contrariada, sendo efusivamente consolada em seu choro pela mãe e pela irmã. Oliveira, destarte, ainda pagou muito caro pelo excesso de bagagem.

Já em pleno vôo, até que fosse iniciado o serviço de bordo, Cacildinha não dirigiu a palavra ao marido; “menos mal”, pensou Oliveira, “não serei obrigado a ouvi-la reclamar de tudo”.

Durou pouco a tranqüilidade de Oliveira. Cacildinha logo se envolveu com os atendentes de vôo e queria ver e saber tudo. Foi à cabine do piloto, quis as receitas das comidas servidas, pediu para levar os talheres, “não que não tenha, mas de lembrança”, e já começara a perguntar sobre a vida pessoal da tripulação, “diz aí, se não rola algo entre vocês?”, quando Oliveira, sugerindo que assistissem ao filme de bordo, conseguiu mante-la quieta. No final da sessão, antes das luzes serem apagadas, Cacildinha trocou de roupa e com sua habitual perseverança convenceu Oliveira a vestir, como ela fizera, um pijama confortável e ridiculamente estampado com motivos aeronáuticos. Oliveira pôs a roupa do avesso e conformou-se pensando, “no escuro ninguém nota”.

 

Na  chegada a Roma as malas do casal não apareceram, levando Cacildinha a desabar em prantos, ainda mais quando não conseguiu completar nenhuma ligação para a mãe pelo seu telefone celular.

O dia transcorreu tenso e cheio de discussões do casal. Cacildinha continuava a chorar  e a telefonar do hotel para a mãe. Oliveira foi obrigado a usar sua autoridade para impedir a esposa que saísse porta afora para comprar um novo enxoval. Tanto quanto procurava localizar a bagagem tentava contactar a embaixada para obter detalhes sobre a abertura do congresso no dia seguinte. As duas coisas se resolveram quase simultaneamente. As malas  foram entregues pela companhia  aérea e o oficial Bertúlio da embaixada chegou ao hotel levando a programação. Foi a salvação para Oliveira de um final de dia lacrimoso e triste. Bertúlio convidou o casal para jantar em um restaurante onde além de saciarem o apetite poderiam alegrar o espírito com música típica de boa qualidade. Cacildinha, com o humor mais leve, divertiu-se em ouvir os músicos e tirar fotos com quase todos no restaurante.

No dia seguinte, Oliveira, numa ação combinada com Bertúlio, conseguiu freqüentar o congresso enquanto Cacildinha percorria a cidade num roteiro turístico intensíssimo.

Nos dias seguintes a rotina se repetiu, acrescentada por algumas horas de telefonemas internacionais feitos por Cacildinha para os familiares e amigos. Todos  sabiam com detalhes o que ela fizera naquele dia. Oliveira sentiu que. a continuar este hábito, estaria arruinado antes do término da jornada.

Cacildinha se decepcionava com muitas coisas e, tanto ao telefone como pessoalmente com Oliveira persistia nas críticas:

– Eu nunca vi uma cidade tão mal conservada. É prédio caindo aos pedaços por toda parte. Qual é a graça de visitar um estádio de futebol todo arrebentado? Como é mesmo o nome?

– Coliseu.

– Isso. Nem jogo mais tem lá. E quanta igreja, meu Deus! O que esse povo faz senão rezar  o tempo todo; não que eu tenha nada contra isto, eu sou católica e praticante, mas se houver missa em todas estas igrejas não vai ter padre para rezar. Isso prá não falar do trânsito, que horror! E que adianta ir ao cinema? Não tem legenda, não dá prá entender nada, uma falta de consideração. Olha, Oliveira, se não fosse pra’ ajuda-lo eu já teria ido embora. Amanhã o Bertúlio vai me levar ao Vaticano, a casa do Papa. Pedi a ele que arranjasse uma audiência com o Papa. A Isaura conseguiu e o marido dela não é ninguém, mas eu não vou lá sem o meu marido. O que o Papa vai pensar? Ouviu, Oliveira, amanhã você tem que ir comigo na casa do Papa, faço questão.

Oliveira nem se preocupava mais em responder a ela. Esperou uma oportunidade, quando ela foi tentar mais uma vez sintonizar a televisão numa das novelas que costumava assistir em casa, e ligou pro Bertúlio, já considerado fiel amigo.

– Bertúlio. Oliveira. Missão. Bota a Cacildinha na fila pra ver o Vaticano, roda com ela por lá até ela cair dura. Mostra pra ela que aquelas fotos com o Papa são vendidas em qualquer lugar.

Bertúlio, à parte sua função profissional, que não era exatamente ciceronar a mulher dos outros, via-se atraído a continuar atuando assim pela curiosidade em saber até onde iriam aqueles disparates. Concordou imediatamente pois ainda achava preferível servir de guia para uma linda mulher desvairada do que assistir um congresso que o mataria de tédio. Procedeu como o combinado. Rodou pelas praça de São Pedro até os pés doerem. Entrou em cada nicho que podia e mostrou a Cacildinha todo tipo de comércio da imagem do Papa. Parecia surtir efeito, pois no final do dia Cacildinha, imersa numa banheira quente e se lamentando do cansaço ainda não soterrara Oliveira com todos os detalhes do dia.

Recuperada pelo banho de imersão, Cacildinha, enrolada na toalha, circulou coleante a frente de Oliveira, obtendo rapidamente o que queria, o interesse concupiscente do marido, que, ato contínuo, encetou ardente atividade copulatória com sua parceira. Não foi surpresa para Oliveira quando, ainda envolto na névoa do desejo saciado, ouviu Cacildinha determinar:

– Oliveira, eu quero uma audiência como Papa. Não volto para casa até conseguir.

No dia seguinte haveria a sessão de encerramento do congresso e Oliveira fora escolhido pra relatar os resultados e deliberações, algo que representava uma situação prestigiosa profissionalmente. Pensando em evitar o dissabor de ver sua queridinha interrompe-lo na presença de todo mundo alegando ter de leva-lo a ver o Papa, Oliveira ligou imediatamente pra o Bertúlio, de um telefone público de fronte ao hotel:

– Bertúlio. Oliveira. Missão urgente. Você tem de levar Cacildinha amanhã pra se encontrar com o Papa.

– Como é que eu vou conseguir isto, Oliveira?

– Sei lá, Bertúlio. Faz o seguinte, liga daqui a pouco para o hotel e diz pra ela que conseguiu uma entrevista extra, ultra reservada. Amanhã você leva ela prá bem longe, mostra uns castelos, museus, qualquer coisa e me liga no fim da tarde. Aí eu invento qualquer coisa mas o congresso já acabou.

– Você manda, Oliveira.

Bertúlio gostou da idéia de passear por alguns pontos turísticos de sua preferência, com tudo pago e tendo apenas que aturar a torrente verbal de Cacildinha, que fora o desequilíbrio mental, não era uma companhia desagradável. Fez o combinado.

Oliveira, na manhã seguinte, num admirável bom humor, viu sua mulher num traje especialmente confeccionado para a ocasião, embarcar no carro de Bertúlio, rumo ao que ela imaginava seria o dia mais importante de sua vida, depois, é claro, do casamento, batizado dos filhos e primeira comunhão.

– Meu amor – finalizou Oliveira na despedida – assim que você estiver para encontrar o Papa, o Bertúlio me liga que eu vou voando.

Os fatos fluíram maravilhosamente para Oliveira. Sua apresentação foi elogiada e no encerramento seu nome foi citado com destaque.

Bertúlio já não teve a mesma sorte.

Após circular com Cacildinha por todos os sítios históricos e arqueológicos que conhecia, sempre definindo o itinerário com Oliveira, falando de cabines telefônicas públicas, simulando que tratava com altas patentes eclesiásticas:

– O Papa tem um esquema de segurança muito rígido, Cacildinha. Eles na última hora dirão aonde vamos encontra-lo.

A desculpa  funcionou o tempo suficiente, segundo os cálculos de Bertúlio, para que Oliveira terminasse sua apresentação, mas quase simultaneamente a sua companhia irromper num acesso de resmungos e malcriações quase incontroláveis. Jurando que finalmente conseguiria a entrevista, Bertúlio ligou pro Oliveira:

– Oliveira, não dá mais prá segurar a Cacildinha. Ela quase conseguiu entrar numa delegacia ameaçando dizer que fora seqüestrada. Se eu não der uma resposta agora não sei do que ela será capaz de fazer.

– Inventa um lugar prá eu me encontrar com vocês e diz que o Papa vai recebê-la. Deixa o resto comigo.

– Então eu já sei para onde vamos. Anota aí.

Bertúlio, usando o último recurso de paciência que possuía, sorriu cinicamente prá Cacildinha e falou:

– Conseguimos. Finalmente. Vamos que o Oliveira nos encontrará lá.

Foram trinta minutos de reclamações que Bertúlio teve de suportar:

– Se eu soubesse que o Papa era tão difícil assim nem teria pensado nesta entrevista. Por mim eu quero que se dane, mas mamãe não me perdoaria e depois tem o Oliveira, que usou o prestígio dele para conseguir isto. Quem o Papa pensa que é? Juro que vou mandar uma carta pro presidente…

– Que presidente, Cacildinha?

Silêncio por algum tempo. Cacildinha pensava.

– Ah, sei lá! Qualquer presidente. O de Roma, por exemplo.

– O Vaticano é um Estado independente, quem manda lá é o Papa.

– E ele não tem que respeitar nenhuma lei? Só porque é Papa não quer dizer que possa fazer o que quiser.

– Já estamos chegando.

Bertúlio conduziu-os até uma mansarda campestre, propriedade de uma família amiga sua, que sabia desabitada naquela época. Parou o carro bem defronte à imponente entrada principal e desceram no lusco-fusco do entardecer:

– Temos de esperar o Dr. Oliveira.

Ao pronunciar estas palavras um taxi surgiu e veio até eles. Oliveira desembarcou rapidamente e com uma expressão taciturna falou-lhes num tom alarmante.:

– Temos de voltar imediatamente a Roma! Houve uma emergência e a entrevista foi cancelada na última hora. Rápido, para o carro!

Empurrou Cacildinha  assustada para dentro do veículo de Bertúlio que arrancou célere.

Após alguns minutos de silêncio Cacildinha, como Oliveira previra mentalmente, desatou seu rol de contrariedades:

– Pára este carro já! Eu não vou a lugar nenhum que não seja pra falar com este maldito Papa. Olha só como eu estou, toda amarrotada. Oliveira, exijo uma explicação. Mamãe vai saber disto. Ah, vai! E este Papa vai ver o que eu vou falar dele. Que absurdo! Oliveira, liga pros seus amigos agora!

– Cacildinha – Oliveira falou, ainda mais soturnamente – O Papa foi assassinado num atentado terrorista. Há um estado de emergência no país e a notícia foi encoberta para evitar uma guerra. Temos de sair de Roma o mais breve possível.

Bertúlio teve de simular um acesso de tosse e quase perde a direção do carro enquanto Oliveira completava a história:

– Devemos agradecer ao Bertúlio que conseguiu se livrar dos terroristas a tempo senão você também estaria morta, Cacildinha. Não é, Bertúlio?

– É …( tosse), é… ( tosse).

– Meu Deus – exclamou Cacildinha – que gente perigosa. Nunca pensei que um Papa pudesse estar envolvido com bandidos. Cruz credo! Depois falam da nossa cidade. Lá nunca mataram nenhum papa. E agora, isto quer dizer que não vamos ter entrevista nenhuma? Não tem um Vice-Papa?

– Cacildinha! – Oliveira gritou exasperado – É uma crise mundial, corremos risco de vida. Vê se entende, tá?

– Não precisa gritar comigo, Oliveira! – respondeu gritando.

Oliveira, no hotel, simulou um estado de emergência permanente. Proibiu Cacildinha de usar o telefone e ordenou que fizesse as malas o mais rápido possível, inclusive  deixando para trás muitas roupas:

– O Bertúlio as mandará depois.

Não deixou sequer que a televisão fosse ligada e pediu que as refeições fossem feitas no quarto. A cada vez que Cacildinha argumentava algo, Oliveira inventava uma mentira maior:

– Foi um atentado horrível. Uma crise sem precedentes, o mundo corre perigo quando a notícia se espalhar. Por isto mantém o segredo. Ninguém deve saber de nada. Esta estratégia parecia estar dando certo porque Cacildinha ficou calada e pensativa, algo raro em sua personalidade.

Oliveira, estimulado pelos resultados obtidos até ali, e julgando que percebia corretamente o que pensava a própria mulher, fez nova invectiva, explicando as conseqüências daquele fato tão nefasto:

– A situação é delicadíssima. Imagine que o Papa terá de ser enterrado secretamente.

E foi então que percebeu o quanto deveria ter ficado calado.

Cacildinha ainda silenciosa por mais alguns minutos, declarou finalmente, daquele modo e naquele tom que prenunciava problemas:

– Oliveira, eu quero ir ao enterro do Papa. Isto, ao menos, ele me deve, já que faltou à entrevista. Nem tente me enrolar porque eu sei que você foi convidado.

Quando eram três horas da manhã e faltavam apenas vinte horas para deixarem Roma, Oliveira se deu por vencido:

– Tá bem, Cacildinha, nós vamos ao enterro do Papa.

Eram três e quinze quando Bertúlio foi despertado e, sobressaltado, antes mesmo de atender ao telefone, pensou, “Cacildinha”.

– Bertúlio. Oliveira. Missão impossível. Temos de ir ao enterro do Papa.

– Tudo bem, Oliveira. Não sei explicar como, mas desde que deixei vocês no hotel que tal idéia não me saía da cabeça. Bem, o tio de uma funcionária da embaixada vai ser enterrado amanhã no início da tarde, e, que loucura, eu disse prá ela que ia ao funeral junto com alguns amigos. Dá tempo de ir e voltar para o embarque. Eu apanho vocês ao meio dia e leva uma hora de viagem até Montone, o lugarejo do funeral.

Houve uma pausa no telefone e Bertúlio continuou, desligando em seguida sem mesmo ouvir a resposta à sua própria indagação:

– Isso vicia, não é, Oliveira?

Oliveira sentou-se na beira da cama, suspirando aliviado e entediado ao mesmo tempo, enquanto maquinalmente repetia a agenda do dia seguinte para a mulher.

Cacildinha não prestou a menor atenção ao que o marido dizia. Nua, retirava das malas vários vestidos, procurando um que fosse mais condizente com um enterro papal. Esta visão também desviou os pensamentos de Oliveira, que ao ver a pele muito branca de Cacildinha contrastando com o preto de um dos vestidos que ela abraçava frente ao espelho, foi tomado por intenso desejo. Tudo que Cacildinha ainda pode falar, antes de se entregar ao sexo foi:

– Será que não é pecado, assim, na véspera do enterro do Papa?

– Não é não, Cacildinha, tem até uma bula Papal a respeito, meu amor.

– Uma o quê? Algum remédio?

– Esquece isto, minha flor, esquece…

 

Bertúlio, à hora prevista, num terno preto muito circunspecto, veio pegar o casal. Cacildinha estava esvoaçante num vestido de gaze preta com um decote que deixava seus peitos despudoradamente proeminentes. Oliveira, depois de muito argumentar conseguiu que ela pusesse um xale cobrindo o colo. Rodara algum  tempo e chegaram à Vila Montone. Cacildinha perguntou:

– Onde está afinal este Papa? Nem parece que ele morreu.

– É segredo, Cacildinha. Explica prá ela Bertúlio.

-É isto mesmo, Cacildinha. A morte do Papa está sendo mantida em segredo, até que se tenha idéia do que aconteceu, e para evitar tumultos, somente os chefes de estado estão sabendo, e o Oliveira é claro. O enterro será secreto e só com a presença da família, exceção feita para nós pelo prestígio do Oliveira.

– Ainda bem – respondeu Cacildinha – Era só o que faltava este  Papa italiano não atender o Oliveira, depois de tudo que ele fez pelo congresso dele.

Cacildinha continuou a falar, numa associação de idéias tão livres e disparatadas que fez Bertúlio, sério, perguntar ao Oliveira:

– Você já procurou saber se ela é realmente normal?

– Não enche, Bertúlio – Oliveira respondeu entre os dentes.

– Foi só uma sugestão.

Chegaram ao cemitério da cidade, tão minúsculo quanto ela, mas provavelmente tão antigo quanto o Império Romano. A família do “Papa” postava-se na pequena capela onde jazia o corpo de Luigi Ganfaldi, um agricultor da região agora guindado à condição de defunto honorário do Papa.

As condolências davam-se num italiano de campanha quase ininteligível mesmo para italianos citadinos. Bertúlio ia traduzindo as conversas adaptando-as ao roteiro apropriado para convencer Cacildinha:

– Esta é a Srª Luigi Ganfaldi, D. Gina, viúva do “Papa; este é o Sr. Pietro, filho do “Papa”.

– Viúva, filho? – perguntou Cacildinha – Papa tem filhos?

– Claro, apenas não são revelados. Já houve até Papisa, e com filhos.

– Minha nossa, que pouca vergonha. Nossos Papas eu garanto que não são assim. Isto é coisa mesmo destes italianos. Bem que mamãe me falou.

Bertúlio olhou para Oliveira de forma suplicante e obteve um sinal de calma em retorno.

Cacildinha tirou foto com todos da família do “Papa” e fez questão que inclinassem o caixão para sair bem na foto com o “Papa”:

– Inclina ele um pouco…assim. Tira aqui, Oliveira.

– Cacildinha!

Bertúlio explicava à família Ganfaldi que Cacildinha estava assim agitada pela emoção, pois lembrava-se do enterro do próprio pai que era italiano.

– Suo papá. Capicce?

Oliveira fez questão de pagar o velório e a missa, que embora não fosse caro, dilapidava mais um pouco suas minguantes economias.

– Eles são tão amáveis; tão família – repetia Cacildinha com os olhos marejados – que realmente não sei porque os nossos Papas não podem casar. Deviam fazer como eles. Me deram até uma foto da família, vejam só. O padre que rezou a missa do velório, você imagina, é filho do Papa e eu pedi a benção dele, aqui, ó, assinada. Afinal uma benção do filho do Papa é quase como do Papa, não é? A Isaura vai morrer de inveja, porque duvido que alguém tenha fotos do enterro do Papa, com a viúva, filhos e tudo.

– Cacildinha, devemos partir.

– Só mais um pouco, eu quero tirar retrato com o bisneto do Papa, um neném.

 

O retorno à pátria foi mais tranqüilo do que Oliveira imaginara e ao chegarem, toda família aguardava. A recepção varou a madrugada de tal forma que Oliveira decidiu não comparecer à repartição naquela segunda-feira, que foi também agitada pois Cacildinha, já com as centenas de fotos reveladas reunia pequenas multidões de vizinhos para relatar suas aventuras. “Seu” Pepe perguntou ao Oliveira:

– Que história estranha é esta do enterro do Papa?

– Não esquenta “seu” Pepe, é um daqueles funerais do interior da Itália, que por acaso era de um parente do nosso guia, sabe como é, eles chamam o patriarca de Papa e daí né, a Cacildinha fez a maior confusão, he, he.

Na terça-feira, Oliveira apresentou-se no trabalho. Os colegas já sabiam da boa apresentação que fizera no congresso e o parabenizavam por isto. Cheio de orgulho e satisfação esperou que o Dr. Graça o chamasse, o que aconteceu ao final do expediente.

Oliveira entrou no gabinete sempre mal iluminado e aguardou que o Dr. Graça cumprisse a velha rotina de aparentar enfado e desinteresse pelo semelhante, moemente se fossem seus funcionários. Finalmente, dirigiu o olhar para Oliveira e perguntou:

– Estou curioso com uma coisa. Sua esposa ligou para minha secretária e contou algo intrigante. Que história é esta do Papa ter sido assassinado por terroristas?

Oliveira pensou então que chegara o momento de surrar Cacildinha.