LOUCO COM UMA FOICE NA MÃO
Luiz F M Lima
O Dr. Graça raramente atendia quem não fosse da repartição, e assim mesmo se recomendados pelos escalões superiores.
Abriu uma exceção para o jornalista Jack Austo do jornal “Tempos”; na verdade uma meia exceção pois ele viera por indicação de um superior.
– Dr. Graça – foi logo falando o periodista – há informações que existe no ministério uma rede de tráfico de influências, tanto que o Ministro J. Monte determinou a sumária demissão de todos os envolvidos. O Sr. pode me dizer como esta repartição foi afetada pela medida e se é verídica a suspeita? Aliás, recentemente, uma funcionária sua foi afastada por alguns problemas semelhantes, não é verdade? Sim – consultando um caderno de anotações – uma tal de Belinda.
– Dona Belinda foi afastada para tratamento de saúde. Ela sofreu um abalo nervoso.
– Mas esteve envolvida com um escroque internacional, não é verdade?
Dr. Graça aumentou a antipatia original pelo tipo ali na sua frente. Lembrou-se do episódio da D. Belinda e julgou que, estando a pobre funcionária ainda sob tratamento psiquiátrico, do qual não sairia tão cedo, e todos os envolvidos naquele incidente longe da repartição, exceto – “bem lembrado”, pensou – o Silas, nada teria a declarar àquele profissional impertinente. Após estas rápidas considerações mentais disse:
– Não há nada aqui que lhe interesse.
Dito isto, despediu-se do jornalista, que viu entrar a secretária já fazendo as mesuras para que se fosse, enquanto falava severamente:
– Por favor, por favor…
Jack Austo pensou em recusar-se a sair, mas lembrou a fama do Dr. Graça e desistiu. O homem era mesmo inabordável. Teria de buscar outros meios para conseguir alguma notícia. Sentou-se num banco, no vestíbulo do elevador, e enquanto consultava suas notas viu chegar o Silas. Este ele conhecia e já até o entrevistara, sem muito sucesso é verdade. “O cara é meio estranho”, pensou, lembrando vagamente o contexto à época.
– Sr. Silas? – gritou ao vê-lo, enquanto pulava do banco.
Silas reconheceu o jornalista mas não lhe deu atenção. Ouviu-o ainda repetir seu nome algumas vezes antes de entrar na repartição. Por motivos mentais intricados que raramente são aparentes até para quem está pensando, Silas perturbou-se com a presença daquele repórter. Seria um presságio? Teve sua resposta quando soube que o Dr. Graça recebera o estranho. “Com certeza, problemas”, pensou, “devo me preparar”.
Ao final do expediente as conversas ocasionais eram referentes à vinda do jornalista, principalmente porque ele fora recebido pelo chefe, coisa raríssima, e gritara o nome do Silas ao vê-lo, o que poderia significar problemas. Silas sorria para os que vinham lhe perguntar se sabia o que estava acontecendo, fazia um gesto vago, encolhendo os ombros e espalmando as mãos e não pronunciava uma palavra. Isto foi considerado como um inequívoco sinal que algo importante estava acontecendo. Tais suspeitas não eram de todo infundadas visto que pululavam nos jornais as denúncias de corrupção no governo e, embora isto não fosse novidade para os funcionários, o tempero especial no caso era a proximidade das eleições. Nada deveria abalar a reputação das instituições. Esta era a ordem, mas estava cada vez mais difícil atendê-la.
Pode ter sido por estes motivos ou por razões inefáveis, mas quando os funcionários retornaram ao trabalho, no dia seguinte, encontraram uma comissão de sindicância, plenipotenciária, criada para apurar “todas as circunstâncias envolvidas nas denúncias”, conforme estava escrito na resolução pregada no quadro de avisos.
Silas imediatamente fechou-se em sua sala e não mais conversou com ninguém o resto do dia, nem mesmo por telefone; -“aliás” – pensara – “muito menos por telefone”. Ele fazia parte da comissão, junto com outro funcionário, o Ivoncuri da Silva, que a presidiria.
Como era de se esperar, dias depois, o Dr. Graça chamou-os em seu gabinete e atendeu-os separadamente. Ivoncuri entrou primeiro e minutos depois saiu, sem falar nada, cumprimentou Silas e foi-se embora. Meia hora depois foi a vez de Silas. Enquanto esperara teve tempo o bastante para analisar os eventos até ali ocorridos. Os dias passados desde o anúncio da sindicância foram marcados por um clima de contida ansiedade. Falara-se baixo, quase em surdina, não se comentaram as notícias dos jornais, exceto o tempo, e sobretudo, reuniram-se em grupos de mexericos. Silas chegara a conclusão que, mais uma vez, fora destinado para uma missão especial e de grande importância, confirmando o reconhecimento do Dr. Graça na sua competência. Sentiu a tranqüilidade perpassar-lhe os sentidos, vindo de uma forte convicção de segurança nas suas habilidades e, enquanto regozijava-se da empatia que ele e o chefe compartilhavam, foi conduzido à presença dele.
Na semi-obscuridade em que vivia mergulhado aquele gabinete, Silas vislumbrou a rotunda silhueta do Dr. Graça, que com seus 150 quilos sentados na reforçada cadeira de mogno, sem levantar os olhos para o funcionário perfilado à sua frente, esticou o braço entregando-lhe uma folha de papel impresso e dizendo naquele gélido tom impessoal:
– Você vai trabalhar com o Ivoncuri.
Nada mais disse, e nem precisava. Silas sabia exatamente o que significava tal atitude – “Confiança” – pensava.
Seguiu-se um dia e Ivoncuri despachou várias intimações sem ter ainda falado com Silas. Os funcionários convocados aglomeravam-se na ante-sala da sindicância, sussurrando uns com os outros, criando uma atmosfera consternada. Ivoncuri interrogava sozinho os intimados.
Silas, a princípio um pouco desconcertado, entendeu a atitude do colega investigador, – “Prudência e discrição. Orientação do Dr. Graça, com certeza” – pensou. Como conseqüência desta peculiar maneira de raciocinar, Silas pôde estabelecer um roteiro próprio de participação na sindicância; ele acompanharia cada passo de Ivoncuri, seria sua sombra, pois seu papel ali estava claro, era proteger o presidente da comissão.
No segundo dia o ambiente ficou visivelmente mais conturbado. Os semblantes carrancudos davam a entender que os interrogatórios eram perturbadores. Vários saíram chorando da sala da sindicância; alguns vieram ter com silas:
– O que está acontecendo Silas? Porque só o Ivoncuri está interrogando as pessoas? Que acusação há contra mim?
– Há uma estratégia. – Respondia Silas com convicção. – Nenhuma injustiça será feita.
Estas palavras pouco ou nada tranqüilizavam os funcionários mesmo porque somente os mais ingênuos ainda o procuravam. De qualquer forma, no final do expediente, dispôs-se a falar com Ivoncuri. Encontrou-o sozinho na sala de entrevistas e ouviu dele:
– Precisa de alguma coisa?
– Isto pergunto eu a você. – respondeu tentando ser simpático.
Ivoncuri olhou-o com o pior ar de desdém que pôde fazer, mas Silas não percebeu, nem mesmo no tom da resposta:
– Não preciso de nada.
– Bem… O Dr. Graça deve tê-lo instruído, é claro. Como fez comigo. Você sabe…
Ivoncuri por um átimo sentiu uma ponta de dúvida quanto ao que Silas lhe dizia. O Dr. Graça mal lhe dirigira a palavra. Teria dado alguma instrução a Silas? Talvez por esta incerteza mudou seu modo de dirigir-se ao colega:
– Sim, claro. Deixou tudo muito bem assentado, investigar todas as circunstâncias… É necessária muita cautela, pois não sabemos o que vamos enfrentar.
– Sim! – respondeu enfático Silas – É uma situação delicada ainda mais porque talvez convivamos com um deles, não é verdade?
– Um deles?
– É. Já estiveram por aqui e podem ter deixado, digamos, simpatizantes. Lembra da Belinda, do Mr. Glover e do inspetor Piragibe?
Ivoncuri desta vez perturbou-se visivelmente. Claro que lembrava do escândalo que fora o caso de D. Belinda e tudo mais, no entanto, já decorrera mais de um ano do episódio e aparentemente tudo fora esclarecido.
Silas continuou:
– E a morte da D. Rosa, quando o Dr. Graça sofreu aquele atentado?
– Mas ele ficou doente e pelo que sei D. Rosa morreu de causas naturais.
Silas deu um sorriso de esguelha e num tom de mofa completou:
– Eu sei o que passei em Berlim. E o sumiço do Dr. Wander? E o atentado ao Papa envolvendo o Dr. Oliveira e D. Cacilda, em Roma?
Ivoncuri ouvira falar destas histórias, mas nunca entendera direito o que exatamente ocorrera, apenas que Silas, de algum modo, estava envolvido em todas elas. Pairava realmente um certo mistério nestes episódios, tanto que as versões na repartição eram as mais inusitadas. Estas lembranças atiçaram o já propendente espírito de Ivoncuri a considerar a sindicância como algo maior do que imaginara a princípio. O fato do Dr. Graça não lhe ter dito nada sobre o que fazer tomou outra dimensão agora que Silas trouxera do passado aqueles fatos já esquecidos. “Será que ele deu as instruções ao Silas e omitiu-as para mim?” – pensou Ivoncuri imediatamente. Esta semente de desconfiança implantou-se no cérebro do sindicante e numa rapidez enorme germinou, ali mesmo, enquanto continuaram a conversar. Ao final, uma árvore frondosa surgira fornecendo a sombra necessária para que os preconceitos, medos e falácias ali se abrigassem. Ivoncuri concluíra que Silas era o maior de seus inimigos no momento. Tinha claramente a incumbência, talvez dada pelo Dr. Graça, de espioná-lo. Deveria ter redobrada cautela com ele, mas não poderia demonstrar medo ou animosidade. Assim declarou:
– Vou fazendo relatórios parciais e você os revê. Creio que assim poderei, digo, poderemos ir mais rápido com o trabalho. Que tal?
– Acho perfeito. Para não haver maiores desconfianças eu lerei tudo após o expediente, aqui mesmo nesta sala, basta você deixar os textos numa gaveta da qual só nós dois teremos as chaves. Concorda?
No terceiro dia o esquema dos dois começou a funcionar.
A repercussão dos interrogatórios na repartição beirava o pânico, já havendo até alegações de abalos na saúde. Algumas licenças, férias e afastamentos por doenças começaram a surgir, por conta disto.
O repórter Jack Austo, impedido de entrar na repartição, vagava pela entrada do prédio a busca de alguém que o informasse dos acontecimentos. Nos dois primeiros dias nada conseguira, mas no terceiro obteve um depoimento anônimo que prontamente se transformou numa notícia no seu jornal, “Tempos”.
Silas, no quarto dia, instalado na sala de sindicância, após o expediente, retirou de volta do pescoço o cordão de aço do qual pendia sua chave. Pôs o conteúdo da gaveta sobre a mesa ao lado do jornal “Tempos”. Leu em primeiro lugar o jornal que numa de suas páginas trazia uma nota da qual ele destacou a passagem:
“Caça Às bruxas na repartição
… Estamos sendo submetidos a grande humilhação. Nos perguntam detalhes íntimos de nossas vidas e da vida dos outros. Querem que a gente dedure os colegas… ”
Em seguida leu o primeiro relatório do dia.
“… diz o interrogado que por diversas vezes fora abordado pela D. Soraia que insistentemente lhe pedia informações sobre o andamento deste ou daquele processo e que ela o fazia de forma insidiosa usando seus recursos físicos como instrumento de persuasão,” ela ficava mostrando os peitos para mim”, disse textualmente o depoente.”
Silas localizou Soraia em sua memória. Era uma mulher alta, de boa aparência, e – “realmente tinha uns peitões” – pensou. Ela deveria depor no dia seguinte.
Dona Soraia entrou na sala de sindicância após seu perfume ter invadido o recinto. As suas mamas, na blusa decotada, parecendo duas bolas de encher prestes a explodirem, não eram menos exuberante do que suas magníficas pernas, à mostra na mini saia em que estava metido seu corpo, um número maior, pelo menos, do que o figurino.
Ivoncuri sentiu um choque percorrer-lhe o corpo, dos pés à cabeça, e um formigamento pélvico indefinível, quando ela sentou-se a sua frente e disse na voz mais melíflua que pode fazer:
– Oi, Ivoncuri. Estou a sua disposição.
Ela percebeu o efeito que produzira no indivíduo. Pior para ele.
Já decorrera uma semana desde que a sindicância fora instalada e junto com ela, progressivamente, o medo entre os funcionários assomava-se. Jack Austo fazia ponto na porta da repartição e a cada dia uma nova notícia anônima surgia. Silas cuidadosamente as recortava e colava nos relatórios de Ivoncuri. Formava-se um calhamaço. Este procedimento levou Ivoncuri a redirecionar suas investigações no sentido de identificar quem havia conversado com o jornalista. Para isto iniciou um estratagema de dizer para cada inquirido uma diferente mentira, algo assustadora, e verificar se ela fora veiculada pela imprensa. Imediatamente intimava o suspeito para uma reinquirição. O efeito era formidável, não tanto pela identificação dos “boquirrotos”, como a eles se referia Ivoncuri, pois de fato bastava olhar pela janela para saber que praticamente todos os funcionários davam entrevistas a Jack, mas pela confusão e consternamento que criava. As listas de demissões sumárias abundavam, modificando-se ao longo dos dias. Os pedidos de férias e licenças médicas aumentaram consideravelmente e os funcionários estavam praticamente paralisados no trabalho. Ivoncuri despachava para o departamento de pessoal seguidas requisições de afastamento e transferência de servidores suspeitos. Entretanto, parecia que alguma pista estava sendo seguida, conforme pode notar a acurada leitura que Silas fazia. D. Soraia pela quarta vez iria depor e seu nome nunca aparecia nas notícias. Esta suspeita aumentou porque praticamente nada constava de seus depoimentos nos relatórios do sindicante.
Silas passou a observar os passos de Soraia, suas maneiras, as idas e vindas à sala de depoimentos – às vezes mais de uma vez por dia – e mesmo a sua estrepitosa indumentária. Julgou que Ivoncuri utilizava uma técnica de aproximação, buscando, pela simpatia, contornar a esperada resistência do suspeito. Teve certeza disso quando uma antiga funcionária, D. Auristela, das poucas que ainda falava sem constrangimento, comentou com Silas:
– Esta piranha da Soraia tá dando pro Ivoncuri!
Não alimentou a perfídia, mas regozijou-se de ter previsto o fato. Pensando assim, no final do expediente procurou o colega investigador:
– Andam comentando por aí que você e a Soraia estão tendo um caso. Compreendo muito bem o que está acontecendo, mas só quero alertá-lo que seja mais discreto pois isso pode prejudicar as investigações.
– Silas, meta-se com a sua vida! – esbravejou Ivoncuri.
– O recado está dado. É a minha obrigação. E por favor, relate com mais detalhes as entrevistas com D. Soraia.
Dito isto, retirou-se da sala sem demonstrar qualquer irritação. Entendia a súbita contrariedade de Ivoncuri, afinal era sua primeira investigação e não poderia esperar que ele tivesse a experiência que Silas adquirira por ter passado por situações tão perigosas ao longo da carreira. “Nervosismo de principiante” pensou e sorriu com certa condescendência.
Pelo sim ou pelo não, os relatórios dos dias que se seguiram acrescentavam alguma coisa sobre a Soraia. Dados sobre sua vida, seus relacionamentos na repartição, confirmando o que se dizia pelos corredores, exceto o Dr. Graça, ele mesmo Silas e alguns poucos outros, ela já tinha trepado com quase todos os chefes. Era uma informação valiosa principalmente quando Soraia o procurou:
– Silas, andam fazendo fofoca com meu nome por aí. Acho isso coisa de invejosos e mal amadas. A minha vida particular não é de interesse de ninguém. Você me conhece e sabe que nunca dei esta ousadia pra ninguém aqui dentro. Trato todos com cortesia e carinho – quem merece, é claro – mas por causa deste meu jeito afetivo -o que posso fazer, sou assim, gosto das pessoas – sofro muita calúnia. Tenho um nome a zelar, não admito falta de respeito! E se há algum envolvimento meu com o Ivoncuri, que fique claro que ninguém tem nada com isso! Ele é uma pessoa maravilhosa e justa, eu o admiro muito. É um cara centrado e está fazendo um bom trabalho, limpando a repartição destes ratos invejosos. Já não era sem tempo.
Houve uma pausa enquanto Soraia olhava Silas para ver o efeito de sua fala sobre ele, menos pela fala e mais pelos trejeitos usados, que não passaram despercebidos. Silas conjeturou que realmente era muito difícil para Ivoncuri resistir aos encantos da colega. Ela tinha um maneirismo destinado a atingir o ponto fraco dos homens. “Uma profissional da sedução” pensou já se armando de cautela, e em boa hora.
– Silas, eu sei que você me compreende, porque sempre lhe admirei também, sua discrição, seu jeito simples, me cativa constantemente. – sorriu e fazendo um biquinho com a boca vermelha do batom mais berrante que havia – além do que você é uma graça. Acho que deveríamos nos conhecer melhor.
Ato contínuo levantou-se, dirigiu-se a Silas e tomando-lhe a mão colocou-a sobre seus exuberantes seios e completou:
– Ando muito agitada com tudo isto, veja só como estou com palpitação. Sentiu? Isto vai me prejudicar a saúde, toda esta bisbilhotice.
Sem que Silas pudesse sequer esboçar qualquer reação ela abaixou-se o envolveu num abraço e beijou-lhe a boca, carimbando-o de vermelho. Rapidamente retornou ao seu lugar dizendo entre dentes:
– Desculpe Silas, mas não pude me conter. Queria fazer isso a tempos. Pintou um clima, me perdoe. Você mexe comigo!
Ivoncuri entrou na sala onde os dois se encontravam sem se anunciar, procurando Soraia; estava na hora dela depor mais uma vez. Soraia, rindo de forma despreocupada pegou Ivoncuri pela mão, rodopiou-o e disse:
– Vamos lá meu querido, temos muito o que depor.
Silas, no banheiro da repartição, limpou a boca com tanta força que seus lábios enrubesceram pela fricção. “Será que o Ivoncuri percebeu?” Pensou preocupado enquanto lavava a boca com água fria para diminuir o rubor.
Ivoncuri percebera e não deixou passar em branco com Soraia:
– O que é isto? Você tá beijando aquele pateta? Tá a fim de me cornear, é?
– Ivonzinho, nunca pense isto. Eu só dei um beijinho porque ele forçou a barra. Ele sempre foi louco por mim. Bem que estranhei quando me chamou lá na sala dele. Se eu não fizesse isso, sei lá o que ele iria aprontar. ‘Cê sabe que o chefe tem uma preferência por ele, não sabe? E se resolvesse te prejudicar? Eu nunca me perdoaria. Mas dar prá ele, nunquinha, homem sem graça. Eu dou é prá você, meu cherloque!
A porta da sala de interrogatórios estava trancada nas três fechaduras que Ivoncuri mandara instalar, as persianas arriadas e o expediente terminado. Soraia, da forma mais despudorada possível, do modo que Ivoncuri gostava, ofereceu-se para ele. O sindicante parecia ter levado uma porrada no quengo, perdendo toda compostura a ponto de se embaralhar com as calças e cair no chão. Soraia, rindo avançou sobre ele ali mesmo no tapete gasto e mofado da repartição dizendo:
– Meu apressadinho, pode ficar calmo que a Soaraiinha aqui vai comer você todinho até não sobrar nada.
Golpe fatal em Ivoncuri. Toda e qualquer comedimento esvaiu-se.
Silas, ainda confuso com o episódio decidiu-se por falar com Ivoncuri. Foi até a sala do colega, mas percebeu que o interrogatório estava em curso. Aproximou-se da porta mais por inércia do que por intenção de anunciar-se, e pode ouvir os sons daquela inquirição; frases chulas, gemidos e gritinhos. Havia em seu espírito uma mistura de curiosidade, inveja, constrangimento, excitação e culpa por estar ali, espionando colegas. Aprumou-se rapidamente, voltou para seu canto e aguardou o fim da sessão. Viu quando Ivoncuri e Soraia deixaram o prédio e depois de esperar algum tempo foi, como de rotina, ler os relatórios.
A sala do Ivoncuri era ampla e rodeada de armários fixados nas paredes, com grandes portas de correr, muitos deles atulhados de papéis antigos da repartição. Quando começou a ler, ouviu um barulho de movimento, vindo do interior de um dos armários. Não podia ser um rato simplesmente pois a este som seguiu-se outro do correr da porta. “Rato não abre portas” pensou aflito, para logo em seguida ver D. Auristela surgir a sua frente de dentro do armário, tão espantada quanto ele:
– Silas!
– Auristela!
– O que tá fazendo aí?
D. Auristela empertigou-se, adquiriu seu ar confiante de sempre e despejou:
– Eu não disse que aquela sem-vergonha tava fornicando com o Ivoncuri, esse safado! Eu vi tudo, meu Deus! Que Deus me perdoe, mas fiz isto para provar a canalhice destes dois. Aqui neste mesmo tapete, como dois animais. E precisava ouvir as obscenidades que diziam. E mais, eu gravei tudo! Vou entregar tudinho pro Dr. Graça, logo cedinho pela manhã.
Silas apercebeu-se da gravidade da situação. Não tanto pela entrega da fita ao chefe, mas pela possibilidade dela cair nas mãos do jornalista. Seria um escândalo e atrapalharia o bom andamento da investigação, logo agora que dava frutos. As ligações de Soraia com as chefias apontavam para aquela rede de influências que se suspeitava e era o sacrifício de Ivoncuri, com alguma compensação, é claro, que possibilitava desvendarem-se as conexões. Era preciso preservar isto.
– Auristela – Silas buscou um tom mais amistoso, pelos tantos anos de convivência no trabalho – Não se precipite. O Dr. Graça vem sendo informado de tudo.
– Tudo? Tudinho? Mesmo essa sacanagem toda?
– Tudo. Eu mesmo o informo. Por isto leio os relatórios no final do dia e deixo um resumo para ele ler pela manhã. Agora mesmo estava preparando o último e iria incluir o que ocorreu aqui.
– Como você sabe se não presenciou?
– O Ivoncuri deixa o telefone fora do gancho enquanto… interroga a Soraia. Confira com sua gravação. Ela disse lá pelas tantas: “Isso, Ivoncuri, passa essa caneta no meu inquérito”.
D. Auristela ficou boquiaberta. Nem precisou conferir na gravação, ela lembrava muito bem desta passagem, aliás, uma das mais revoltantes. A indignação dela desdobrou-se em pranto, pelo que foi consolada com palavras compreensivas por Silas:
– Auristela, tem muito mais em jogo aqui do que você pensa. O Ivoncuri pode ter se enrolado um pouco, mas não é fácil manter a cabeça fria, numa investigação dessas, com o inimigo usando tais armas. Peço a você compreensão, não divulgue nada ainda.
– Então a Soraia é suspeita?
– Suspeitíssima e diria que a cada hora sua culpa aumenta.
– E os outros que foram afastados?
– É uma tática de dissimulação para que Soraia não desconfie de nada. Ela pensa que está por cima e vai revelando o que queremos. Alguns afastados têm culpa e não souberam resistir aos encantos da Sereia, ou Soraia.- Silas usou o trocadilho para desanuviar o ambiente. Sem nenhum sucesso.
– E quando termina tudo isto? Há um clima de rancor na repartição. Tem gente querendo dar porrada nela e no Ivoncuri.
– Estamos perto do final. Depois que tudo for esclarecido todos verão que a investigação foi justa.
– Aquela vaca vai ser punida afinal?
– Quase certamente.
– Pois bem, vou esperar mais alguns dias. Alguns dias entendeu? Se não for feito nada eu juro que entrego esta fita pro tal do Jack. Mesmo que eu me ferre, faço isso.
Silas ouviu o que mais temia e não teve outro caminho senão concordar com ela.
Os dias se passaram e a rotina de interrogatórios de Ivoncuri continuava, com a diferença que além de Soraia somente era chamado outro qualquer quando ela indicava:
– Ivonzinho, a D. Auristela anda dizendo horrores a nosso respeito pela repartição. Não era hora de dar uma lição na jabiraca? Tensa do jeito que fico não consigo me concentrar naquilo, ‘cê sabe né?
D. Auristela recebeu a intimação e teve um faniquito. Correu para o Silas:
– O que você me diz disto? – abanando a convocatória no nariz dele.
– Rotina. Nada importante. Vá lá e deixe o resto por minha conta. Confie.
Auristela, furiosa, não prometeu nada além de mais um pouco de paciência. Silas precisava agir rápido. Devia alertar ao Ivoncuri que o clima estava pesado e D. Auristela tinha a gravação:
– Você tem de se livrar logo da Soraia, mesmo que ela não tenha ainda revelado tudo. Peça já a demissão dela, ou ao menos o afastamento. Eu sei que será difícil pra você, afinal ela é realmente uma potranca, profissional bem sabemos, mas não dá mais para segurar os funcionários.
– O que você está falando Silas. Ficou maluco? E com que direito você está se metendo nos meus assuntos com a Soraia? Quem lhe deu esta autoridade? O Dr. Graça?
Esta última pergunta veio menos como um tom de desafio do que uma dúvida temerosa. Silas não percebeu, pois desde o princípio considerou isto como óbvio. Quem mais poderia ter-lhe dado a função de supervisor de Ivoncuri? Por este motivo não respondeu nada se limitando a olhá-lo com certa comiseração:
– Faça como quiser, mas dê logo um fim nisto.
Silas sentiu-se num anticlímax, importantíssimo, onde decisões cruciais estavam sendo tomadas. Tinha de ser duro.
Ivoncuri, após a saída de Silas, depois de xingá-lo à vontade, decidiu arriscar. “Esse cara é um panaca. Não manda porra nenhuma. Vou ferrar com ele.” Mesmo assim uma dúvida impertinente borboleteava pela sua mente. “E se…”.
Soraia deu um endereço para Silas encontrá-la. Não era de bom alvitre aceitar o convite, exceto se, como considerou o caso, fosse parte de uma missão. O local era um prédio residencial de algum luxo e o apartamento bem mobiliado:
– Um amigo me emprestou – Explicou Soraia, num traje de seda, puxado para o oriental e meio transparente. Sem perguntar meteu um copo de vinho branco gelado nas mãos do Silas, que a bem da verdade não bebia alcoólicos, sentou-se perfumadíssima ao seu lado e num ambiente algo penumbroso e falando coisas cada vez mais ininteligíveis para um homem inundado por hormônios, Soraia despiu-o como se depenasse um frango e manipulando-o como um magarefe sexual utilizou-se dele como bem quis. Silas abandonou-se nas mãos experientes dela sabendo que teria de pagar um preço:
– Silas. O Ivoncuri está com a cabeça virada. Disse-me coisas incríveis ontem a seu respeito. Não posso acreditar. Ele acha que você está tramando contra ele com o Dr. Graça e tudo por minha causa. Eu jurei que era fiel a ele, o que é verdade pelo menos até agora, mas já me sinto rompida com ele. E você ali pertinho de mim, cheio de desejo e eu te maltratando assim. Mas isto eu vou consertar.
E tome chupões no Silas:
– Como pude ser tão estúpida em acreditar que o Ivoncuri era o homem forte do Dr. Graça? Sempre foi você. Eu fico toda arrepiada com homens poderosos, já te falei? Fico tesuda mesmo. Sabe, ele está tão cheio de ciúmes que me disse que vai me mandar embora. Você acredita? E mais disse que foi você quem mandou. É mole? Não é verdade, não é Silaszinho? Você não pensa assim, né? Claro que não, isso é ciúme do Ivoncuri. Depois ele deve mesmo ter ciúmes de você. Imagine quando eu disser prá ele que ele não é nem um décimo de macho que você. Ah! Tem mais. A D. Auristela ameaçou-o, falou em gravação e o escambau. O Ivoncuri tá doidinho. O que que eu faço?
Silas foi tomado por uma calma e frieza que o impressionou. Os fatos estavam tão claros como um céu limpo. Mais uma vez tinha de tirar o chapéu para o Dr. Graça. Que descortino! Desde o início ele sabia do envolvimento do Ivoncuri e da Soraia. Como, senão juntá-los, para evidenciar tudo. Perfeito. Chegando a estas conclusões e delas derivando seu futuro comportamento limitou-se a responder para sua anfitriã:
– Não faça nada. Aja como se nada estivesse acontecendo. Trate-o como sempre fez. Deixe o resto por minha conta.
Soraia suspirou aliviada, enroscou-se no pescoço do Silas e cobriu-o de beijos enquanto murmurava agradecimentos e pornografias. Mesmo assim desvencilhou-se dele, que já demonstrava um recrudescente desejo.
Transcorridos mais dois dias Silas verificou que seus conselhos foram cumpridos à risca. Os encontros de Soraia e Ivoncuri tornaram-se tão conspícuos que já se comentava abertamente nos recintos da repartição, sempre seguidos de epítetos desairosos. Auristela interpelou Silas:
– Não vou esperar mais, hoje entrego tudo pros jornais.
Silas num semblante grave não tentou demover a indignada senhora deste propósito, afinal, os culpados haviam se mostrado devido à ardilosa e espetacular estratégia do Dr. Graça. Limitou-se a dizer:
– Fiz tudo que podia.
De um dia para o outro a revolta se instalou na repartição. Grupinhos se entretinham em repassar as histórias mais escabrosas referendadas pela quase inaudível gravação de D. Auristela, como se esperaria de algo gravado de dentro do armário. O afastamento de D. Auristela e mais um magote de amanuenses, anunciados no quadro de avisos, incendiou de vez os ânimos. Foram ter com Silas:
– Queremos falar com o Dr. Graça. – liderava D. Auristela – Isto já passou dos limites! Este Ivoncuri é um louco com uma foice na mão! Um devasso. Não podemos nos sujeitar a tal humilhação.
Silas argumentava no sentido que aguardassem, pois certamente o Dr. Graça estava a par de tudo e tomaria uma decisão. O grupo se desfez contrariado e se podiam ouvir algumas exclamações entrecortadas:
– Esse cara é um babaca. Melhor chamar a imprensa.
O expediente aproximava-se do fim e parecia tudo normal. As pessoas se despediam e acertavam a agenda para o próximo dia. Silas relaxou um pouco e preparou-se para esperar a hora de ler os relatórios. Tomara a decisão de entregar o que fosse ao Dr. Graça. Absorto que estava nestes pensamentos não percebeu a movimentação de Ivoncuri e Soraia para a sala de interrogatórios. Olhou o relógio e pensou que já era hora de ler os relatórios. A porta da sala de Ivoncuri estava entreaberta e dela vinham os inconfundíveis sons do congresso carnal a que se dedicavam os dois. “Que despudor” pensou Silas, “Perderam a sensatez completamente”. E murmurou para si:
– Os criminosos selam seus destinos.
Mal terminou de falar foi empurrado bruscamente porta adentro, o que o fez cair no chão. Uma horda de funcionários raivosos, o jornalista Jack Austo e um fotógrafo invadiram o recinto e não só fotografaram os indecorosos parceiros no ato libidinoso com a seguir os cobriram de pancadas. Uma surra memorável ao som de D. Auristela:
– Canalhas, sacanas, filhos da puta! Porrada neles!
Já havia decorrido uma quinzena de dias do episódio e o tema arrefecera na imprensa. Ivoncuri e Soraia foram medicados, estavam em casa e fora de perigo. Silas manobrara no departamento de pessoal para que fossem remanejados para outra repartição fora do estado:
– O mais longe possível, por favor.
Ficara afinal com a incumbência de apresentar o relatório ao chefe, coisa que fez imediatamente após os eventos. Dois dias depois o Dr. Graça recebeu seis volumes das anotações da sindicância, com uma nota simples de Silas no encaminhamento da papelada constando: “Assunto encerrado”.
Silas foi chamado no gabinete do chefe. Após a espera de praxe, entrou. Na mesa do Dr. Graça vislumbrou os seis volumes amarrados com barbante e uma cartolina por cima onde se lia “ARQUIVAR” .
Dr. Graça dirigiu-se a Silas e falou:
– Silas, você vai para Israel.