O DR. GRAÇA MORRE
Luiz F M Lima
Dr. Armígio tinha a mesma rotina há anos. Dizia-se que era possível acertar o relógio pela hora que ele chegava na repartição. Pontualíssimo.
Dr. Armígio era um homem de compleição pequena, macérrimo, de poucas falas, sempre sisudo, mas polido com os colegas de trabalho. Ao chegar, abria o armário de serviço por detrás da sua mesa e sacava uma garrafa de álcool e uma flanela. Limpava toda a área de trabalho inclusive a cadeira e só então se sentava. Quando fazia muito calor despia o paletó, que parecia ser sempre um número maior, e o pendurava no armário. Limpava os grossos óculos e iniciava seu expediente. Dna Corinha, a secretária da seção, tão logo percebia o término da faxina de Armígio, invariavelmente supria a mesa dele com mais uma fornada de processos. Ela já sabia, por experiência, que a pilha não deveria ter mais de 30 cm de altura. Dr. Armígio punha-se a ler página por página os volumes à sua frente.
“Lia mesmo?” perguntava-se a secretária. Ao final do expediente havia outra limpeza e ele se retirava cumprimentando formalmente os circunstantes. Não se sabia de sua vida privada, nunca participava das festas da repartição e o Dr. Graça, o chefe, somente falara com ele uma única vez.
Já havia uma semana que o Dr. Armígio não aparecia. Nada excepcional, não fora Dna Corinha ter comentado que ele não estava de férias nem viajando a serviço. Também não constava afastamento por doença. A notícia rapidamente percorreu a repartição e alimentava toda sorte de especulação. Até que, no décimo dia de ausência, logo pela manhã, apareceu uma tal Srª. Iolanda querendo falar com o chefe. Foi atendida pelo assessor do Dr. Graça. “Seu” Jaime T, como era conhecido, ouviu um tanto surpreso a história de Iolanda. Ela era a desconhecida esposa do Dr. Armígio e, timidamente, informou que o marido encontrava-se enfermo. Ela mal se retirara do recinto e já corria a maldosa história que “o Armígio está nas últimas. A viúva já até veio tratar da pensão, antes mesmo do coitado desencarnar”.
“Seu” Jaime T nada soube além de que o funcionário estava internado numa clínica, após um colapso em casa, e que havia alguns processos na residência do Armígio que precisavam ser devolvidos. O auxiliar Orlando, uma espécie de faz-tudo, foi incumbido de levar Dna Iolanda em casa numa viatura oficial e retornar com os processos.
Assim, horas depois, o Orlando voltou sem os processos e correu direto ao gabinete do “Seu” Jaime T, despertando alguma curiosidade aos poucos funcionários do final do expediente.
– “Seu” Jaime T, não é “alguns processos“, é a casa toda.
– Como a casa toda?
– Não cabe no carro, precisa de uma viatura maior.
– Explica melhor. Quantos processos são?
– Não dá para calcular. A casa inteira está cheia. Do chão até o teto, por toda parte. Na cozinha no banheiro, tudo, tudinho repleto. Acho que o Sr. devia ir lá para ver. Vai ser preciso um caminhão. Não dá para acreditar.
– E como vivem eles no meio disso tudo?
– Não sei, mas o cheiro de naftalina é insuportável. A dona disse que era para afastar as baratas e as traças. O cara não regula bem. Aliás, ela me disse que ele está num hospício.
– Orlando. – Disse gravemente “Seu” Jaime T – Ela não me falou nada disso. Olha a fofoca.
– Eu juro. No caminho ela chorou e falou que ele estava internado numa clínica de malucos.
– O caso então é grave mesmo. Amanhã iremos lá e deixarei o caminhão e alguns funcionários de sobreaviso.
Dna Iolanda abriu a porta para “Seu” Jaime T e Orlando. Dentro do apartamento estava tudo escuro e mal se via o corredor de acesso à sala. Orlando, precavidamente, trouxera uma potente lanterna e ao iluminar o recinto, à medida que entravam no apartamento, foi se revelando um labirinto feito por processos empilhados, o que fez “Seu” Jaime T exclamar:
– Mas isto é uma autêntica masmorra!
Foram necessários vários dias para retirar todos os processos da casa além da convocação de um serviço de extermínio de insetos, tal a quantidades destes pequenos monstros que surgiram à medida que se revolviam os papéis.
Na repartição, foi improvisado um depósito para o material numa sala contígua ao gabinete do Dr. Graça, onde em outros tempos já houvera uma copa. Lá foram postos também o armário e a mesa do Armígio. “Este caso” – pensou “Seu” Jaime T – “vai precisar de uma sindicância, aí é melhor juntar todas as provas”. O Dr. Graça fora informado, mas, como esperado, não teceu nenhum comentário.
Enquanto na repartição, por dias, o assunto era o biruta do Dr. Armígio e seu labirinto de processos – “A coitada da mulher dele ficava acorrentada entre as baratas” – o perturbado funcionário cumpria seu papel de louco, num hospício, trajando uma bata surrada e sentindo-se “humilhado até a alma“. Dna Iolanda todos os dias levava comida caseira que invariavelmente Armígio recusava comentando:
– Eles querem me matar, Iolanda.
– Quem Armígio? – sempre perguntava sinceramente espantada.
– Não importa. Preciso sair daqui. Minhas coisas estão em ordem?
– Está tudo como você deixou – mentia Iolanda.
A casa mudara radicalmente nessas semanas. O sol inundava a sala e os quartos, e Iolanda ficava feliz só de ver toda aquela luz. Voltara a cozinhar, limpar e cuidar da casa. Comprara umas plantas. O que mais gostava no entanto era ouvir o rádio e o cheiro do café inundando o ambiente. Dormia bem. Estava satisfeita mas apreensiva sobre como Armígio encararia tais mudanças. Seguidamente perguntava aos médicos sobre o prognóstico de alta do marido e a cada vez tinha uma explicação diferente. “Mas voltar a viver naquele inferno, não mesmo”, pensava.
Armígio insistia que ela trouxesse seus livros de anotações no que sempre recebia dela a mesma desculpa por não ter trazido:
-O Dr. não deixa, Armígio.
Mas ele melhorava sua conduta. As entrevistas com o médico fluíam positivamente. Armígio logo percebeu que não podia expor todos os seus pensamentos e passou a dar respostas óbvias a tudo que lhe perguntavam. Sempre se compungia quando confrontado com a própria história recente. Funcionava, porque o médico anunciou que teria alta em breve caso continuasse a progredir daquele jeito. Os remédios, jogava-os fora pensando, “Querem me deixar dopado”. Seus pensamentos estavam todos voltados para os livros de anotações que possuía. Conjecturou que não deixavam a Iolanda lhe entregar os livros era porque sabiam da importância deles. “E se eles foram confiscados?” pensava temerosamente. Então entendeu porque teria alta: “Os livros, eles não os acharam e precisam me liberar e me seguir para encontrá-los”.
Isto dava outra perspectiva à situação. Não podia pôr em risco a Iolanda. Mas…
“E se ela estiver do lado deles?” Desta forma, segundo regras de raciocínio muito próprias, Armígio engendrava um plano atrás do outro para escapar do Hospital e recuperar seus livros. Não precisou pô-los em prática porque dias depois lhe foi dada alta. Precavidamente deixou-se levar por Iolanda, fingindo que nada percebera da trama em que o enredavam. Quando Armígio chegou em casa, e não fora a sua determinação em manter-se no propósito de não voltar para o hospício, quase teve outro colapso ao ver que perdera todo seu acervo.
Fechou a casa com todas as chaves que dispunha e agarrou Iolanda pelos braços firmemente, mas não a ponto de machucá-la e perguntou numa voz que a deixou assustada:
– Quem fez isso? O que fizeram com você? A ameaçaram? Sim, foi isso?
Largou a mulher e imediatamente começou a buscar freneticamente seus livros até que Iolanda pode falar já em prantos:
– Eles levaram tudo no caminhão.
– Quem?
– Os homens da repartição. Mas não me fizeram nenhum mal apenas disseram que era preciso devolver tudo.
– Como foi que souberam disso?
– Não sei. De alguma forma descobriram seus papéis. – Iolanda mentiu outra vez em sua própria defesa.
– Ah! Eles me envenenaram para obter informações. Por isso passei mal e fui internado. Eles sabiam que eu estava perto de desmascará-los.
Depois disso Armígio emudeceu e pareceu ficar mais calmo exceto pelo fato de ter cortado os fios do telefone reinstalado. Iolanda se refugiou no quarto e nem mesmo o rádio ligou. Chorava baixinho pensando no que faria. Adormeceu. Quando acordou o dia já amanhecera e Armígio não estava em casa. Percebeu que ele se fora e a trancara em casa. O rádio não funcionava. Precisava fugir dali, mas como?
Enquanto pensava, fez o café e arrumou a casa. Abriu as janelas, regou as plantas e preparou um almoço simples mas saboroso. Já lá se ia a tarde e Armígio não voltara. Lembrou-se que precisava defender-se. O martelo de carne foi a arma escolhida que cuidadosamente escondeu. A noite veio e de novo Iolanda dormiu. Já acordou preocupada pois fazia um dia inteiro que Armígio fora-se. Que teria acontecido? Retomou sua rotina doméstica e quando já era noite bateram à porta e chamaram seu nome. Pelo som reconheceu a voz do zelador, mas havia outros com ele. Ela explicou que estava trancada e não demorou muito a porta foi arrombada. O zelador veio na frente e falou-lhe que não se assustasse:
– É esse senhor aqui atrás e a polícia que querem lhe falar. Acho que tem a ver com o Dr. Armígio.
Iolanda reconheceu “seu” Jaime T.
Sentada na sala somente com “seu” Jaime T e um policial, relatou o ocorrido desde a alta do marido. Então “seu” Jaime T. falou:
– Dna Iolanda. Lamento informar, mas achamos que seu marido morreu.
Iolanda não era alguém de pensamentos rebuscados e tratava a vida com uma simplicidade inata talvez decorrente de sua criação em uma família pobre de migrantes do campo. Não saberia dizer por que ao invés de ficar triste sentira um imenso alívio, de tal forma que enrubesceu envergonhada pelo que sentia, como se todos à volta percebessem sua estranha alegria. Na prática aquela vexação foi interpretada como uma resposta adequada de uma viúva diante à triste notícia. Ficou silenciosa por alguns poucos minutos, incapaz de falar qualquer coisa por medo de trair-se no regozijo. Recompôs-se e pode unicamente exclamar, mais por ela do que pelo pobre Armígio:
-Meu Deus! Minha Nossa Senhora!
Todos ficaram consternados. Então ela perguntou:
– Como foi que aconteceu?
“Seu” Jaime T. e o policial se entreolharam, embaraçados, até que o “seu” Jaime T. iniciou um relato do que se sabia.
Naquela manhã, no dia que Armígio trancou a própria mulher em casa, na repartição, poucos notaram a presença dele, como foi o caso de Dna Corinha. Ele passou pelo corredor, apressado como sempre, e sumiu em uma das salas. Ela ainda correu para ver aonde ele fora, mas não conseguiu. Comentou o fato com outros funcionários, e obteve sempre a mesma resposta:
– Que isso Corinha? O homem ‘tá numa camisa de força. Você se confundiu.
Corinha, ela mesma começou a ter dúvidas se vira o funcionário, pois fora tudo muito rápido. Mas não se enganara em absoluto, tanto que, quase no final do expediente, o servente do andar comentou:
– O Dr. Armígio esteve aqui. A Sra. não o viu?
-Sim, o vi, mas não falei com ele – respondeu disfarçando a surpresa – Creio que veio resolver alguns assuntos particulares.
– Mas ele não ficou maluco? Num ‘tava num hospício?
– Por favor! Isso não é maneira de se referir a um colega de trabalho. Ele teve problemas, mas já deve ter se tratado. – Corinha, embora concordasse com a opinião do servente, não achava pertinente dar asas aos subalternos. – Você viu para onde ele foi? Falou com ele?
– Eu até o cumprimentei, mas ele nem respondeu e foi direto ao gabinete do Dr. Graça.
– Ah! Então foi o velho rabugento que o chamou.
– Oh! D na Corinha, isso não é maneira de se referir ao chefe.
– Não enche! Eu vou averiguar se o gordão recebeu ele.
O servente riu. Corinha foi até a sala da Dna Dagmar, a secretária do “bolo fofo”, e não a encontrou. A mesa estava arrumada de modo que ela já deveria ter se retirado, então, somente o motorista do Dr. Graça encontrava-se na sala. Corinha deu uma desculpa qualquer para estar ali e assim como quem não quer nada perguntou:
– Você viu o Dr. Armígio entrar? Parece que o Dr. Graça queria falar com ele.
– O biruta?
– É.
– Num vi não, mas ele pode estar lá dentro porque o chefe ainda não me avisou que vai sair. Bem da verdade ele nunca avisa mesmo.
Corinha se despediu mas ficou curiosa sobre o paradeiro do Armígio. Desceu os andares para ir embora e perguntou a quantos pode sobre o Armígio. Ninguém sabia de nada. Pelo visto só ela e o servente o viram na repartição.
Tal foi sua estranheza ao fato que cruzou a rua e postou-se no bar em frente, pediu um lanche e passou a vigiar a entrada do prédio.
O tempo passou, o prédio foi fechado e ninguém sequer parecido com Armígio saiu. “Talvez” – pensou – “o balofo tenha lhe oferecido uma carona. Mas não, aquele ogro não seria tão prestativo assim. Eles ainda estão lá dentro. Vou continuar esperando.
Passou-se mais um par de horas e Corinha já estava prestes a desistir quando percebeu um movimento na calçada e alguns transeuntes falando e apontando para o prédio:
-Olha lá! ‘Tá pegando fogo!
Corinha correu do seu lugar para a calçada e pode vislumbrar, desde o início, o incêndio que consumia a repartição. Ela imediatamente exclamou:
– Foi o Dr. Armígio!
Ninguém prestou atenção ao que ela dissera pois o burburinho já era intenso no quarteirão. A confusão só fez aumentar quando chegaram a polícia e os bombeiros. Apesar da presteza com que atenderam ao chamado, meia hora após o alarme, foi necessário mais uma hora para arrumar o esquema de combate ao fogo. O incêndio consumiu o prédio durante as horas seguintes obrigando a que fossem chamados cada vez mais bombeiros. Corinha não arredou o pé do local. O bar não fechou pois o dono percebeu que o incêndio poderia render-lhe uma boa féria, o que efetivamente aconteceu. A imprensa, os curiosos, a televisão os próprios bombeiros e o pessoal da repartição que sabendo do evento foi assistir às chamas. Corinha virou o centro das atenções dos colegas que chegavam:
– Eu vi tudo desde o comecinho. Foi o Armígio.
– Que horror! Será que tinha alguém lá dentro?
– O gordão ‘tava lá com o Armígio e o motorista. Eu não vi ninguém saindo.
As versões circulavam com rapidez até que Dna Corinha foi entrevistada por uma rádio, por outra, por alguns jornalistas e finalmente pela televisão.
“Uma funcionária da repartição assistiu a tragédia desde o início e vamos entrevistá-la. Sra. Corinha pode contar como tudo começou?
– Bem. Foi um funcionário nosso que enlouqueceu e começou tudo. Eu o vi entrando no prédio de forma estranha e logo em seguida o fogo começou. Acredito mesmo que ele tenha feito mais do que simplesmente botar fogo no prédio.
“O que mais este funcionário pôde ter feito?
– Acho que ele matou o Dr. Graça. O chefe da repartição.
A matéria foi para o ar e o rebuliço aumentou, a ponto da Dna Corinha ser custodiada pela polícia. Ela efetivamente estava gostando muito daquilo tudo.
Nesta manhã, após trancar a Dna Iolanda em casa – não por maldade, mas por alguma inescrutável precaução – Armígio dirigiu-se à repartição. Estava decidido a recuperar seus livros a qualquer custo. “Preciso máxima cautela. A repartição está repleta de espiões”. Esperou algum tempo na rua, andando para cima e para baixo em frente ao prédio, até que todos os funcionários tivessem chegado e se instalado nas suas mesas. Entrou e subiu pelas escadas até um andar superior ao seu. Circulou rapidamente pelos corredores até que ouviu de uma faxineira uma frase reveladora:
– Me mandaram limpar a antiga copa do 3º andar. Vou ter o maior trabalho. Ela está cheia daqueles papéis do tal Dr. Armígio. É, o que endoidou.
Armígio deu meia volta e se escondeu numa sala pouquíssimo freqüentada que funcionava como depósito de móveis quebrados. Enquanto o tempo passava ele fazia planos e rebuscava sua teoria. “O Dr. Graça deve estar por trás de tudo. O fio da meada vai até ele. Mas como ele descobriu que eu estava perto de desmascará-lo? Alguém contou. Só pode ter sido a Iolanda. Ela era a única que conhecia minhas investigações. Depois eu ajusto as contas com ela”.
Fim de tarde, o movimento na repartição diminuíra e Armígio preparou-se para dar início à sua busca. Desceu um andar e dirigiu-se a antiga copa contígua ao gabinete do Dr. Graça. No caminho encontrou o servente, mas ignorou seu cumprimento. Deu sorte. Dna Dagmar não estava na sala e ele pôde entrar no local onde haviam guardado os processos. Outra sorte, não fora trancado. Uma vez lá dentro bloqueou a porta e aguardou que o expediente encerrasse. Pôs-se em ação. Tateando no escuro, pois temia acender as luzes e chamar a atenção, sondava o ambiente. Achou seu armário e a escrivaninha. Percebeu que na obscuridade dificilmente acharia seus livros. Precisava de alguma luz, mas não trouxera uma lanterna. Lembrou-se que havia algumas caixas de fósforos no armário. Vasculhou com as mãos onde pensava encontrá-las e teve sucesso.
Enquanto Armígio virava-se no escuro, Dr. Graça, na sala ao lado, preparava-se para sua rotina de fim de expediente. Entorpecido pelo uísque que ingerira durante o dia, coisa que fazia todos os dias, dirigiu-se ao banheiro especialmente reformado para ele. Um vaso sanitário especial para conter sua imensa bunda e outros artefatos próprios para um obeso daquelas proporções. Acendeu o abajur acima da retrete e passou a folhear uma revista de variedades. Logo após suas comoções intestinais, cochilou, como de hábito. Durante estas funções, os sons emitidos por ele reverberavam pelo banheiro de ladrilhos e propagavam-se pelo tubo de ventilação, criando uma sonoplastia espetacular de roncos, sibilos e gargarejos.
Foi justamente no momento dos estertores do Dr. Graça, ampliados pelo tubo de ventilação, que Armígio acendeu o fósforo para iluminar o ambiente a procura de seus livros. Ele jamais ouvira coisa semelhante e dadas as circunstâncias, aterrorizantes. Sem atinar que ruídos medonhos eram aqueles, com o palito queimando-lhe os dedos, Armígio deixou-o cair das mãos justamente em cima da garrafa de álcool que a servente responsável pela limpeza deixara aberta. Houve uma explosão com um ruído surdo e o conteúdo expelido atingiu Armígio em cheio. Ele voltou-se para apagar o fogo de suas vestes, mas tropeçou e caiu por cima dos processos. À medida que tentava se levantar mais papel ele remexia e assim alimentava o fogo. A dor excruciante o fez desmaiar e desta forma Armígio morreu servindo de bucha para o imenso incêndio que se seguiu. A fumaça entrou pelo tubo de ventilação e sufocou Dr. Graça que em seu fim, sem acordar, apenas soltou mais roncos espantosos. Tal foi a violência e rapidez do fogo que o motorista na ante-sala não teve tempo de se safar e pereceu, igualmente intoxicado pela fumaça.
Por horas o prédio ardeu e teve parte de sua estrutura desmoronada. Tudo que estava dentro da repartição foi queimado. Dias depois, no rescaldo e na perícia encontrou-se, dentro do vaso sanitário rachado, um crânio calcinado que se supôs fosse do Dr. Graça no que posteriormente se confirmou. Sem dúvida, concluíram os peritos, que o fogo se iniciara na copa transformada em depósito e que o papel fora o principal responsável pela propagação das chamas, mas a causa exata do que provocara o fogo não foi estabelecida.
Para Dna Corinha não havia dúvidas que fora o Armígio e sua história foi crescendo em detalhes tais que ela asseverava ter praticamente visto o Armígio atear fogo nos processos.
A repartição fora extinta e seus funcionários redistribuídos. Corinha já em outro local de trabalho virou um tipo de celebridade e seguidamente contava o episódio do incêndio, acrescentando sempre algo mais. Contudo, sempre encerrava o relato de forma dramática, depois de tecer os mais desairosos comentários sobre o Dr. Graça:
– Pois, terminou com a caveira na privada.
E ria-se com sarcasmo. Em geral, a audiência a acompanhava no riso.