INSPETOR PIRAGIBE MEETS MR. GLOVER

Luiz F M Lima

 I

O inspetor Piragibe estava triste e, enquanto aguardava na ante-sala do Dr. Graça, seus pensamentos rememoravam os acontecimentos dos últimos meses.

Só decepções. Entre tantas, a que lhe parecia mais dolorosa fora a sua preterição ao cargo de inspetor-chefe. Não que suas agruras amorosas fossem menos importantes, mas ter sido posto de lado na carreira lhe parecia uma injustiça irreparável, além da falta de educação de ter sabido de sua transferência pelo Diário Oficial. Piragibe sentia-se magoado como nunca.

Dona Arminda avisou-o que o Dr. Graça iria recebê-lo.

O escritório do chefe mantinha-se na habitual obscuridade e silêncio. Piragibe apresentou-se, entregou-lhe as credenciais de sua transferência e como o Dr. Graça de olhos fixos no tampo da própria mesa não pronunciou nenhuma palavra por quase dois minutos, o inspetor pensou em falar algo. Repensou o que poderia dizer, limpou a garganta e quando finalmente pronunciaria sua fala, o Dr. Graça, numa voz baixa lhe disse:

– Sr. Piragibe, seja bem vindo, – levantou os olhos e completou – obrigado e tenha um bom dia.

“Nem ao menos me cumprimentou” , pensou o inspetor, sentindo-se ainda mais deprimido. Passou pela D. Arminda sem olhar para os lados e dirigiu-se à sua sala. “Aqui posso me lamentar a vontade”, assim pensava. Ligou um pequeno rádio de pilha e sentou-se sobre a mesa vazia, perguntando-se: “O que estou fazendo aqui? O que há para investigar nesta repartição? Que futuro posso ter na carreira trabalhando num lugar como este?”

A sensação de injustiça assomou-lhe o espírito e num violento golpe de irritação socou o tampo da mesa, fazendo o radinho cair ao chão e emudecer. Olhou a queda e não fez a menor menção de resgatar o aparelho, cujas entranhas estavam à mostra. Não teve pena dele.

Tirou de uma gaveta da mesa uma pasta com seu nome escrito na capa. Sentiu ganas de rasgá-la mas seu caráter disciplinado o fez ajeitar-se à mesa e abrir a pasta. Havia nela relatórios. Poucos, vagos, inúteis. “Não vou agüentar”, pensou e incontinente levantou-se e pisoteou o rádio de pilha. Deu um passo para trás e pôs-se a mirar o objeto, que parecia um animal esmagado, quando, já se preparando para lhe dar um último e formidável pontapé, a porta se abriu. Piragibe tentou sustar o meneio de sua perna, a meio caminho do chute, o que o obrigou a fazer uma pirueta gaiata para manter-se equilibrado.

Silas, a meio caminho de entrar, ainda na soleira, assistiu ao volteio do Inspetor e achou aquela manobra incomum. Olhou a volta esperando encontrar uma explicação para aquele rodopio e, não achando nada, preferiu falar:

– Dr. Piragibe? Mandou me chamar? Sou o Silas.

Piragibe, desconcertado, mas tentando manter a compostura, sorriu constrangido e respondeu:

– Ah! Silas. Sim, chamei-o. Por favor, entre.

Empertigando-se, puxou uma cadeira para o visitante enquanto, ao mesmo tempo, dava pequenos chutes no radinho, tentando, mal disfarçadamente, escondê-lo para trás da escrivaninha. Silas assistiu a manobra acrescentando-a ao rol de estranhezas que aquela entrevista já prenunciava. “Quem seria este tal de Piragibe?”, pensava. “Um investigador, dizem, mas de que lado estará?”

– Sr. Silas, foi bom ter vindo, quero dizer, assim, rápido, logo que o chamei He! He! Porque… Creio que o senhor sabe, eu estou encarregado das investigações aqui da repartição… Bem, há uns relatórios que chegaram às minhas mãos e gostaria de saber, já que eles mencionam o senhor, se não há algo a acrescentar, talvez alguma coisa que lhe tenha escapado, não é? Quero deixar claro, antes de tudo, que qualquer coisa que me disser será mantida no maior sigilo, isto é recomendação expressa do Dr. Graça, como sabe.

Silas sorriu discretamente, satisfeito em ouvir do próprio Piragibe sua obediência ao Dr. Graça. “Esse é dos meus”, pensou e decidiu colaborar.

-Talvez, Dr. Piragibe, haja certos detalhes, como o senhor mesmo disse, que possam ter escapado.

– Fique à vontade Sr. Silas.

– Bem, ultimamente, eu diria, nestes últimos meses, muitas coisas estranhas têm acontecido.

– Ah! Sim? – Respondeu Piragibe num tom completamente artificial.

– É. Muito estranhas…

– O senhor, há alguns meses, fez uma viagem a Berlim, mas…

– Este caso foi uma situação delicadíssima. Creio que o Dr. Graça deve ter abordado o assunto.

– Ahn? Sim! O Dr. Graça mencionou – Piragibe dissimulava para não dar a entender que o Dr. Graça o desprezara – mas ele mesmo me disse que procurasse saber dos detalhes com você, já que o relatório é meio vago.

– Oh! Claro – Silas mais uma vez compreendia a estratégia do chefe – Quanto menos coisas escritas menor a chance de uma inconfidência, não é mesmo?

Piragibe olhou para Silas com um ar de curiosidade e fastio, mas foi interpretado por Silas como uma expressão de confirmação. Sem pronunciar nada o Inspetor balançou a cabeça afirmativamente dando a entender que Silas continuasse:

– Devo dizer Inspetor, que a minha história só tem sentido se analisada considerando os acontecimentos posteriores, embora tenha ocorrido antes. É que os motivos reais se perdem no passado, antes do meu envolvimento, mas o Dr. Graça sabe de tudo, de forma que ele já lhe deve ter contado coisas que eu não sei, e nem quero saber. Segurança, né? E mais, todos os fatos posteriores, como a morte suspeitíssima de D. Rosa, o problema do Dr. Graça em Istambul, aquela história nebulosa do atentado mortal ao Papa em Roma, que o Dr. Oliveira presenciou, e o desaparecimento do Dr. Wander na Bolívia. Isto apenas do que se sabe, porque outras coisas podem ter acontecido sem o nosso conhecimento, aqui mesmo na repartição. Há situações que eu me furto de falar porque, Deus me livre de levantar falso testemunho, não tenho provas concretas, mas…

– Mas…?

– Bem, eu particularmente ficaria intrigado com as ligações telefônicas internacionais que são feitas aqui no serviço.

– Ligações internacionais? Mas isto é rotina.

– Ah! Eis o ponto; por ser rotina passa despercebida, mas que informações estão sendo passadas? Quem sabe o que se trama nestas chamadas? Quem são os responsáveis? Afinal foi daqui que saíram as instruções que redundaram nos problemas enfrentados, ou eu estou enganado? Hein?

– Você mencionou outros casos, como o problema do Dr. Graça em Istambul, associado à morte de D. Rosa, mas consta do relatório que foram circunstâncias fortuitas, por exemplo, o Dr. Graça foi operado da vesícula…

-Tem certeza?

– Ao menos é o que consta aqui, e a D. Rosa, pelo que se sabe, morreu de derrame cerebral…

– É o que diz o relatório?

– Sim.

– Então acredite nele…

– Você tem outra opinião, pelo que entendi.

– Eu acho que já falei demais; tudo que eu sei, eu sei, e tenho minhas convicções, mas é função sua investigar. Creio que se o Dr. Graça não lhe esclareceu mais, é porque não quis mesmo.

Piragibe olhava de forma tão desalentada seu interlocutor que a conversa prosseguiu sem ele prestar a menor atenção à narrativa rica em detalhes do Silas que supunha o Dr. Graça ter esclarecido tudo ao inspetor. Por fim, Piragibe falou:

– Obrigado Silas, você foi de muita valia.

Em casa, mais tarde, solitário, Piragibe embriagou-se com sua desesperança e seu uísque de boa qualidade.

 

 

II

 

Os dias passavam tediosamente para Piragibe, principalmente por ter de ouvir o Silas recontar detalhadamente como, dentro da repartição, havia uma conspiração em curso. Os papéis da repartição acumulavam-se sobre sua mesa, um efeito da presteza de Silas em apresentar provas – “irrefutáveis” – do complô contra o Dr. Graça.

– Verifique isto – Silas dirigiu-se a Piragibe mostrando uma extensa conta telefônica da repartição; “mais uma evidência incontestável”, pensou o inspetor. – São 42 ligações internacionais para o mesmo número. De quem será este telefone? Porque tantas ligações?

– Interessante… – comentou Piragibe, sem muita convicção.

– E o mais interessante Dr. Piragibe é que todos estes telefonemas foram feitos pela Dnª. Belinda!

– Dnª. Belinda? Não tive ainda o prazer…

– Ah! Não se preocupe. Ela logo, logo o encontrará. Não há pessoa nesta repartição que a Dnª Belinda não conheça nem lugar que não bisbilhote, exceto o gabinete do Dr. Graça.

– Conte-me mais sobre esta senhora. O que teria de tão especial no fato dela ter ligado tantas vezes, certamente um exagero me parece, mas pelo que vejo aqui no organograma a área de trabalho dela é justamente nas relações públicas internacionais.

– Que melhor lugar para se estar quando é necessário dissimular os contactos com o exterior?

Piragibe sentiu que seu ânimo apagava-se lentamente como uma chama esmaecida à medida que ouvia Silas discorrer sobre o pérfido desempenho da Dnª Belinda. Desistiu desde logo de retrucar a ensandecida teoria de Silas sobre a conjuração contra o Dr. Graça, a repartição e um sem número de outros alvos. Talvez o seu semblante tenha transmitido aquela sensação depressiva porque Silas fez algumas afirmações que perturbaram Piragibe:

– Eu sei Dr. Piragibe que o Sr. teve problemas  e que, como se comenta, veio para cá  quase como exilado, mas permita-me a franqueza, tenho certeza que o Dr. Graça interferiu na  sua transferência.

Piragibe considerou, ali, que Silas era definitivamente um imbecil. Ficou muito irritado mas procurou controlar-se e de sua boca saiu a inocente expressão:

– É mesmo Silas… Que coisa, né? Porque ele faria isto? Não me conhecia.

– Não menospreze o Dr. Graça. Já lá se vão mais de sete administrações mudadas e ele, firme. Isto não é por acaso. O Dr. Graça tem conexões.

Esta última frase foi dita num tom abaixo do que vinha usando e acompanhada de um olhar de soslaio como se procurando alguma presença indesejada.

– E o que você acha que o levou a fazer tal coisa, Silas? – Piragibe estava possuído do mais profundo desprezo por aquela pessoa e mal disfarçava o sarcasmo em suas palavras.

Silas não percebeu e considerou, posteriormente, na viagem de volta para casa, no chacoalhar do trem suburbano, que aquela conversa fora uma demonstração de consideração por parte de Piragibe. “Se abrir assim… é confiança”. Na hora respondeu:

– Ele confia em você e também queria alguém sem compromissos na repartição.

– Você acha que ele confia em você?

– Inteiramente! Disto não tenho dúvidas!

– E como você sabe que ele confia em mim?

– Porque nos colocou juntos nesta investigação.

Piragibe considerava-se um homem duro, e cultivava esta imagem, mas ao mesmo tempo queria parecer afável, atencioso e preocupado com os seres humanos, embora, realmente não acreditasse nestes nobres sentimentos. Olhou Silas e não sentiu qualquer piedade por ele.

– Entendo… – Foi tudo que conseguiu falar.

Silas julgando se tratar de uma aquiescência à sua tese, e satisfeito com o desenrolar da conversação acrescentou:

– Pode esperar que algo vai acontecer.

Piragibe não podia maldizer sua sorte mais do que fazia. Como livrar-se daquela provação?

O tempo escoava como o mel do pote sobre as suas panquecas matinais. Um pequeno prazer que Piragibe se permitia diariamente, antes de dirigir-se, sempre deprimido, à repartição.

Naquela manhã, Dnª Belinda entrou em sua sala. Não era uma mulher particularmente bonita, mas bem cuidada, elegante e agitada:

– Dr. Piragibe, gostaria de lhe falar em particular.

– À vontade, Dnª Belinda.

– Vou direto ao assunto. Há alguma coisa no meu trabalho que esteja sendo objeto de alguma investigação?

Piragibe manteve-se calado e fez uma expressão de dúvida, o que encorajou Dnª Belinda a continuar:

– Nas últimas semanas tem chegado ao meu setor vários pedidos de relatórios, oriundos daqui, acerca das ligações telefônicas que fazemos.

Piragibe fez outra expressão de surpresa.

– Pois então – Continuou a funcionária – Se eu soubesse exatamente do que se trata poderia colaborar melhor. Não tenho nada a esconder, mas realmente tais solicitações têm me atrapalhado um pouco, pela insistência e impertinência, já que respondi a maioria delas mais de uma vez. O que está acontecendo?

Sem mais delongas colocou à frente do Inspetor uma pilha de papéis, assinados pelo Silas, solicitando os detalhes mais comezinhos sobre as ligações feitas.

Piragibe passou os olhos, sem o menor interesse em saber as respostas. Ganhava tempo para dar uma resposta que não o colocasse no ridículo.

– Dnª Belinda, diga-me sinceramente, qual é o seu relacionamento com o Sr. Silas. Quero dizer há alguma animosidade entre vocês?

Belinda deu um suspiro interior de alívio – “Então o Inspetor já entendeu tudo”, pensou – mas exteriormente manteve-se impassível.

– Normal.

– Normal? – Piragibe custava a crer que isto seria possível. A sua pergunta pegou Dnª Belinda desprevenida. “O que este homem está sabendo?” Ela pensou um tanto inquieta. Respondeu sem muita convicção:

– O Silas, o Sr. Silas, é alguém, digamos, complicado.

– Como assim?

– Ele vive circulando pela repartição, olhando sem falar nada. Espreitando, sabe? De mais a mais ninguém sabe exatamente o que ele faz. Volta e meia o Dr. Graça o manda viajar e não se sabe para que. Comenta-se que ele é protegido do gorducho, desculpe-me, do Dr. Graça.

– Ah, é?

– Bem, aqui ninguém tem a boa vida dele.

– Alguém já falou estas coisas para o Dr. Graça?

– Ninguém tem coragem e depois não há nada assim concreto, exceto este jeito dele espreitar, agora estes pedidos, que julguei foram feitos por sua ordem.

– Dnª Belinda, entendo a sua preocupação. Talvez tenha havido certo exagero do Silas, mas estes pedidos são apenas rotinas burocráticas, não há nada em curso sendo investigado. Haveria motivos para tanto?

Dnª Belinda ficou ligeiramente enrubescida. O rubor não passou despercebido a Piragibe que, aguçado seu instinto policial continuou:

– Tenho tomado conhecimento de alguns eventos ocorridos que são um tanto incomuns, e fico curioso sobre o que os funcionários pensam sobre eles, já que os relatórios são pouco elucidativos.

– Oh! Então o Sr. sabe!

– Do que?

O embaraço de Dnª Belinda desatou o nó que continha a curiosidade de Piragibe. Daí para frente, durante duas horas, Dnª Belinda desfiou a história secreta da repartição do Dr. Graça, segundo sua própria ótica, não poupando qualquer reputação. No final, a servidora chorou por auto-indulgência. Piragibe achou tudo aquilo apenas patético, mas procurou fazer alguns gestos insinceros de compreensão. No fim do expediente chamou Silas e relatou parcialmente o que ocorrera, recomendando que não mais assediasse a Dnª Belinda:

– Deixe-a por minha conta. Você já fez o seu trabalho.

Silas não podia se sentir mais orgulhoso de si mesmo; eles eram uma equipe. A satisfação aumentou quando Piragibe completou:

 – O Dr. Graça está sendo devidamente informado.

Todos os papéis referentes aos inúmeros casos ocorridos, que jaziam em sua mesa, trazidos pelo Silas, foram queimados por Piragibe, no recôndito do seu lar, numa pira expiatória em meio às imprecações do Inspetor quanto à rudeza dos deuses com o seu destino imediato:

– Estou em um hospício, o que mais pode me acontecer?

III

O telefone soou acordando Piragibe. Eram seis horas da manhã. Uma voz tonitruante em inglês procurava por ele.

– Mr. Glover?  exclamou – How do you do?

Erwin Glover, o mais famoso e competente agente da Federal Security Agency – FSA, o órgão americano que cuida da segurança das repartições federais, o estava procurando e isto era realmente uma honra.  Conheceram-se num curso sobre fraudes na burocracia, em Denver, e em outras inúmeras vezes em congressos e encontros. Fizeram-se amigos e trocavam correspondências com razoável freqüência. Havia quase um ano que não se comunicavam.

Embora um tanto evasivo, traço natural de um agente como Glover, fez ver ao amigo que precisava de sua ajuda. Alguma investigação importante e sigilosa em curso trouxe-o sob a cobertura de ser um representante comercial.

Piragibe ofereceu-lhe abrigo, o que foi gentilmente recusado pela razão do sigilo que o caso exigia.

Marcaram um encontro em algum lugar discreto.

Na ocasião, sem esclarecer muito mais o que dissera ao telefone, Glover deu a entender que precisava circular em alguns meios comerciais e burocráticos para identificar membros de um tipo de organização criminosa internacional ligada á corrupção, lavagem de dinheiro e outras coisas mais.

Piragibe relatou-lhe resumidamente como sua vida fora nos últimos tempos e onde estava trabalhando no momento. Não se furtou a lamentar seu destino naquela repartição.

Glover ouviu-o pacientemente e no final disse-lhe algumas palavras de ânimo.

Neste momento foram interrompidos por uma voz alta e estridente de mulher:

– Inspetor Piragibe, que surpresa!

Era Dnª. Belinda, a última pessoa que desejava encontrar naquele momento.

Em poucos minutos ela estava sentada à mesa conversando com Mr. Glover.

Embora o encontro tenha sido inesperado, o colega americano parecia muito à vontade com D. Belinda, tanto que Piragibe ao se retirar, deixou-os ainda conversando.

Nos dias que se seguiram, para maior surpresa ainda de Piragibe, Mr. Glover apareceu na repartição para acompanhar D. Belinda ao almoço. Pareciam velhos amigos se divertindo juntos.

Silas também reparou no casal e comentou com Piragibe:

– D. Belinda arrumou um negão de namorado.

– É o Mr. Glover. – emendou Piragibe.

– O Sr. o conhece?

– Sim, é um americano, representante comercial de uma empresa de equipamentos de segurança.

– Que coincidência… – Murmurou Silas, cujo raciocínio instantâneo já o fizera concluir que tudo aquilo era um disfarce engendrado por Piragibe para pôr a Dnª. Belinda sob vigilância. Isto aumentou sua admiração por Piragibe.

Em poucas semanas era evidente o envolvimento amoroso de Glover e Belinda.

Silas sondava discretamente a opinião de Piragibe. Este, intrigado, não sabia o que dizer e respondia vagamente às sondagens de Silas. Era suficiente para que o diligente amanuense reforçasse sua convicção na existência de uma trama para desmascarar a Dnª. Belinda.

“Deve ser algo muito importante, para não quererem me contar tudo”, pensava indulgentemente consigo mesmo.

Piragibe de uma maneira diplomática e até mesmo constrangida conversava com Glover esporadicamente tentando saber mais daquela missão tão secreta e que não se coadunava muito com o conspícuo comportamento do americano. Não abordava o romance dele, mas com freqüência Glover lhe dava detalhes, às vezes um tanto íntimos demais.

She’s hot! What a woman.” Era uma exclamação contumaz.

“She was a bliss to me. See, I have this cover as a commercial salesman, what do they do as a rule when they are not saling”? Dating pretty girls. Perfect. 

Foi depois de algum tempo que Dr. Graça chamou Piragibe.

No gabinete soturno estavam três pessoas. O Dr. Graça, e dois tipos claramente estrangeiros.

Dr. Graça dirigiu-se a ele e falou:

-Estes dois senhores querem alguma coisa que eu acho tem a ver contigo. Leve-os daqui e os atenda.

Assim foi feito. Piragibe desconfiou que o chefe lhe passara um  “abacaxi” pois os dois cavalheiros eram americanos, só falavam inglês e provavelmente o Dr. Graça não os entendera pois eles reclamaram discretamente do tratamento frio que tiveram.

Na sala do inspetor os participantes, inclusive o Silas, que sorrateiramente os aguardava, apresentaram-se. Piragibe não pode deixar de notar que Silas, embora não soubesse uma única palavra em inglês, prestava grande atenção à conversa. Não fez nenhuma apreciação sobre o fato e até mesmo discretamente traduziu alguns diálogos fúteis.

Isto para Silas era um sinal do mais alto respeito que Piragibe tinha por ele e, que fora o Dr. Graça quem sugerira a sua participação neste encontro de trabalho. A mente de Silas operava febrilmente montando a história destes dois personagens e ligando-os aos fatos recentes. Suas teorias conspiratórias se confirmaram quando soube que os dois eram agentes do FBI americano. “Dnª Belinda, foi desmascarada”, pensou.

Piragibe despediu-se dos tiras americanos e pôs-se a conjecturar, sozinho, depois que se desvencilhou de um Silas cada vez mais conspirativo.

Mr. G. e Mr. D. eram dois agentes do FBI, enviados para o Brasil a procura de Glover. Declararam que estavam preocupados com o destino de Glover porque ele se envolvera numa ação perigosíssima e não dava notícias há semanas. Piragibe disse-lhes que realmente estivera com Glover, mas por pouco tempo e depois disso não o vira mais. Não revelou que sabia da missão de Glover mas preocupou-se com o que os agentes lhe revelaram. Glover estava trabalhando sozinho e provavelmente não sabia que uma cilada estava sendo preparada para ele. Precisavam retirar Glover imediatamente do país, mas temiam que se ele soubesse da vinda dos agentes não iria concordar em abortar a missão, portanto, pediram a Piragibe que caso encontrasse Glover os avisasse sem alertá-lo, pois neste caso poderia pôr a vida do amigo em risco ainda maior.

Piragibe, contudo, não sabia exatamente onde Glover morava e considerou achá-lo por telefone muito arriscado. Não deveria envolver Dnª Belinda no caso por óbvias razões de segurança. A solução veio alguns dias depois. Silas disse-lhe:

– Mr. Glover mudou-se para a casa de Dnª Belinda.

– O quê, Silas?

– Eu a sigo há dias, desde que os policiais americanos falaram dele. Creio que o Mr. Glover corre perigo com a Dnª Belinda.

Piragibe parecia ter levado um soco no queixo. Estava atordoado. Sentiu que o fato do Silas ter descoberto o paradeiro de Glover antes dele era uma desmoralização, mas precisava ser prático.

– Muito bom Silas. Deixe agora por minha conta. Concentre-se na repartição.

Silas não podia se sentir mais orgulhoso da aprovação do chefe. Eles trabalhavam em total harmonia tanto que nem as palavras eram necessárias. Sabiam o que tinha de ser feito.

Piragibe conseguiu marcar um encontro com Glover em local discreto.

Contou-lhe o que ocorria e da entrevista com seus colegas. Omitiu, naturalmente, que fora Silas quem o localizara. Glover ficou algum tempo em silêncio e finalmente descreveu a situação para Piragibe:

  • These guys aren’t worried about me. They want to cheat me!

Piragibe ficou sabendo que Glover deixara a FSA e agora trabalhava como free-lance para empresas seguradoras. No momento estava a serviço da “Sheppard Overseas Investment and Insurance” atrás de um vigarista que dera um prejuízo de milhões de dólares à companhia. Havia uma recompensa também milionária para quem o prendesse de modo que os seus colegas na verdade queriam passar-lhe a perna e ficar com a recompensa:

  • I’m this close to this person. In the next days I’ll nail him. You know, I was going to tell you everything but I didn’t want to involve you into this as it might put you in some kind of trouble. But I think I’ve done it anyway. I’m sorry.

Piragibe protestou pela consideração de Glover, afinal eram amigos e deviam confiar um no outro. Glover estava sensivelmente consternado e revelou sua preocupação com Belinda. Precisava de apenas 48 horas para encerrar a missão, embolsar a recompensa e tirar férias com a Belinda, não sem antes é claro retribuir Piragibe pelos préstimos. Ele fazia questão.

Don´t worry about that. – Retrucou Piragibe.

As cifras citadas por Glover eram realmente impressionantes e Piragibe considerava mentalmente que aquilo poderia ser uma compensação pelas atribulações e humilhações que vinha sofrendo. Ajudaria Glover e a ele mesmo.

No dia seguinte encarregou Silas de inúmeras tarefas inúteis na repartição, como conferir os telefonemas de Dnª Belinda. “Este maluco não pode botar tudo a perder bisbilhotando por aí” pensava o Inspetor Piragibe.

Pôs-se a fazer um relatório fictício para o Dr. Graça no qual volta e meia chamava o Silas para dirimir alguma dúvida. Isto o deixaria em paz em seu escritório enquanto o besta do Silas achasse que não devia interromper o chefe.

Um novo rádio de pilhas com fones auriculares o deixava imerso em devaneios, pensando no que faria com aquele dinheiro extra que viria em tão boa hora.

Dois dias se passaram. Dnª Belinda não viera trabalhar conforme notou Silas. Piragibe, como para passar o tempo acrescentou um comentário mordaz:

-O que deveria ela estar fazendo àquela hora? E Glover, estaria correndo perigo? Hein, Silas?

– Creio que ela irá seqüestrá-lo. Ela reservou um hotel no Paraguai.

– Como assim?

– Eu chequei os telefonemas e ela fez duas reservas em um hotel em Assunção.

Piragibe sentiu algo estranho acontecer em seu corpo e cérebro. Primeiro uma aceleração cardíaca, seguido de suores e finalmente um tipo de epifania:

– Puta que o pariu!

– Também fizeram reservas em um vôo doméstico até Foz do Iguaçu. É hoje, daqui há duas horas.

– Puta que o pariu!

Piragibe precisava agir rapidamente. Havia combinado com Glover que antes dele partir fariam os acertos quanto à sua parte. Ele daria uma pista falsa para os agentes do FBI dando tempo de Glover repatriar o meliante, e o Paraguai não estava nos planos, muito menos com Dnª Belinda. “Algo deu errado” – pensou – “Glover precisa de ajuda, mas não pôde me contactar”. Mais uma vez sentiu um inexplicável desprezo por Silas.

No entanto Silas estava acometido por profundo sentimento de gratidão para com Piragibe, que confiara a ele tão importante investigação das ligações de Dnª Belinda, no que redundara na descoberta do plano de fuga. Piragibe se precipitara da sala com tal rapidez que nem dera tempo de Silas contar-lhe o que mais havia feito. Este resolveu seguir o chefe, pois talvez ele precisasse de ajuda.

 

IV

 

No carro, sozinho, a caminho do aeroporto Piragibe repassava os últimos dias, não querendo crer que Glover o enganara. Sua raiva recrudesceu por ter sido tão idiota de confiar mais uma vez nos outros. Um grau maior de ódio quando pensou que Silas fora mais esperto do que ele. Mas, e se fora apenas um contratempo? Ele estaria julgando mal o colega. Tentou alimentar esta esperança, mas no fundo de sua alma sabia-se enganado.

Largou o carro de qualquer maneira no estacionamento do aeroporto e precipitou-se adentro. Faltava pouco para o vôo ser chamado. Dirigiu-se célere ao embarque e, desta vez a sorte o favoreceu pois havia um colega conhecido na polícia que o permitiu entrar na área dos passageiros. Entrou na sala de embarque em acelerada carreira a tempo de ver os dois tiras americanos algemarem Glover.

Ficou estupefato com a cena. Dnª Belinda igualmente algemada por policiais locais estava tendo um ataque histérico. Glover olhou-o com profundo ódio e, quando Piragibe ameaçou falar alguma coisa um dos americanos sorriu-lhe e falou em voz alta:

  • Thanks for your help Inspector. We received the message from you through Mr. Silas.

Glover exclamou para Piragibe:

You son of a bitch!

Passado muitos minutos, na presença do delegado da Interpol, Piragibe soube, junto com Silas, que aparecera no aeroporto após a refrega, que Glover dera um golpe milionário nos E.E.U.U. e fugira para local então ignorado. No entanto uma ligação internacional para um dos telefones rastreados na América apontara a repartição de Piragibe como local de origem.

– Foi Dnª Belinda. Eu chequei – murmurou-lhe Silas.

 – Pois – continuou o Delegado, precisávamos ser muito cautelosos para não espantar o experiente Glover. Foi quando você Piragibe e este seu incomparável ajudante o Sr. Silas, praticamente colocaram Glover em nossas mãos.

Silas, quando os trâmites na Interpol terminaram, contou a Piragibe que fora ao hotel dos agentes do FBI e lhes dera todas as informações:

– Por ordem sua, chefe. Afinal, somos uma equipe. Foi meio confuso até eles entenderem, mas, como eu tinha fotos dos dois mostrei-as e consegui que percebessem a trama. Dali fui para a repartição e o resto foi o que vimos.

Piragibe embebedou-se mais tarde sozinho em casa,

No dia seguinte, com uma ressaca monumental, teve de esperar longo tempo até ser recebido pelo Dr. Graça.

O gordíssimo Graça recebeu-o da mesma forma como fazia com todos. Indiferença e enfado. Falou-lhe laconicamente sem denotar qualquer emoção na voz:

– Você foi transferido. Na saída peça para o Silas entrar.

Silas postou-se a frente do Dr. Graça que continuou a ler papéis em cima da mesa até que sem levantar os olhos disse:

– Você vai para Beirute, Silas. Fale com a Dnª Arminda para providenciar tudo. É só.

Silas saiu da sala ainda em tempo de despedir-se de Piragibe:

– Boa sorte Inspetor. Quem sabe não teremos outra missão juntos?

Piragibe saiu da repartição como se deixasse um pesadelo. Benzeu-se e esconjurou os votos de Silas.