O NATAL NA REPARTIÇÃO

Luiz F M Lima

 Chiquinho sentia sua cabeça latejar embora não houvesse dor.  Sentou-se à frente de Abel.

Abel, circunspecto, como a ocasião exigia, sorriu mentalmente diante da grotesca imagem daquele estafeta, o Chiquinho, cuja cabeça envolta em um turbante de gaze e os olhos circundados por enormes hematomas, davam-lhe um aspecto fantasmagórico.

– Como isto aconteceu? – Perguntou Abel após as apresentações de praxe daquela comissão de inquérito disciplinar, da qual era o chefe.

Xoi na xala do Dr. Xalmir.

A voz de Chiquinho soou distorcida devido ao inchaço da boca.

– Vou poupá-lo de falar. Irei descrevendo os fatos e você vai confirmando. OK? Muito bem. Você foi à sala do Dr. Walmir a pedido dele…

Chiquinho foi confirmando o relato. Tudo aconteceu muito rápido. O engenheiro Adelson entrou na sala logo após Chiquinho, e sentou-se na ponta da mesa de reunião, no lado oposto, defrontando-se com a mesa de trabalho onde estava o Dr. Walmir dando instruções ao Chiquinho. Quando D. Cecília entrou no recinto e desviou a atenção do Dr. Walmir o engenheiro lançou o pesado cinzeiro de vidro na cabeça do estafeta.

– Chiquinho, seus amigos prestaram um depoimento que eu peço a você que confirme a veracidade.

Dito isto relatou ao desafortunado servente:

¨… eu falei pro Chiquinho, – ô cara, se segura aí. Tu fica falando da dona e vai se dar mal – mas o Chiquinho não é mole –   continuou a contar como fodeu com a D. Marli, num quartinho no telhado. Aí chegou o Dr., esse mesmo, o engenheiro, e ficou ouvindo aquilo tudo. Não falou nada, mas pela cara dele, foi mal…

É, foi num quartinho no terraço onde ta morando uma mulher com o filho. Comadre da D. Marli. Tremendo lance, aí.

– A pessoa citada é a Sra. Goreti?

Chiquinho confirmou tudo e foi dispensado.

A Dna Goreti, mal continha o nervosismo diante de Abel. Ensaiou chorar várias vezes durante as apresentações formais e antes mesmo que se fisessem as primeiras inquirições desatou a falar entrecortando com lágrimas:

– Eu só aceitei isto porque estava desesperada. Meu casamento desfeito, com um filhinho e sem casa para morar. A Marli me sugeriu ficar naquele quarto até que eu arranjasse alguma coisa. O Sr. sabe, ela  tem muita influência, e eu aceitei. Nunca pensei que passaria por tanto constrangimento. Toda semana, pelo menos duas vezes, eu era obrigada a ceder o aposento para ela ter encontros amorosos. Mas eu não tinha saída, e quando reclamava, ela me ameaçava. Finalmente naquela semana consegui um local para ficar e ia comunicar a ela, mas como estamos no Natal resolvi esperar que a data passasse.

Abel ainda ouviu outros detalhes sobre a vida sexual e afetiva da D. Marli, inclusive que ela era amante, de longa data, do Superintendente Geral, homem de grande importância política.

Na seqüência das investigações a lista de depoentes aumentara consideravelmente, mas os assuntos fugiam ao escopo do inquérito. Abel ainda não esclarecera porque o engenheiro Adelson agredira o ´office boy¨  de maneira tão violenta. Isto de certo modo prejudicava o andamento do inquérito que pelo desejo de Abel se encerraria sem maiores conturbações, como era a regra da repartição.

D. Marli parecia uma funcionária exemplar, prestativa, discreta e razoavelmente bonita, já nos seus quarenta e poucos anos. Sempre muito elegante, falava baixo e educadamente. Surgia na história como pivô dos fatos com uma imagem muito diferente, de uma mulher perversa.

-D. Marli – iniciou Abel – dê-me a sua versão dos fatos diante do que já foi deposto e que é de seu conhecimento.

D. Marli, como bem notou Abel, não era propriamente uma beldade, mas tinha um encanto natural que vinha sobretudo de seus olhos grandes, profundamente castanhos com longos cílios que lhe conferia um tipo de cativante candura.

Muito contida, não demonstrava qualquer inquietude.

– Dr. Abel, estou profundamente chocada com todas estas mentiras que li. É verdade que a Goreti está, ou estava ocupando o quarto do zelador no terraço com o meu conhecimento, mas foi por pura caridade que intercedi com o zelador para que ela pudesse ficar por uns tempos. Ela me procurou há alguns meses em total desespero. Tivera uma traumática separação de seu marido, inclusive sofrendo agressões físicas. Eventualmente eu a procurava para lembrar-lhe que sua permanência não deveria se estender muito e sentia que ela se irritava com minhas advertências. Nunca pensei que a ingratidão dela chegasse a tanta baixeza.

Este menino, o Chiquinho, é um molequinho mentiroso, não merece nenhuma consideração de minha parte. Eu, a estagiária Bia e o Chiquinho realmente estivemos no quarto da zeladoria durante a festa de natal da repartição, mas porque ela queria um lugar para se fantasiar para a encenação de natal no salão da festa. Ela surgiria como o ano novo. Quando eu vi a indumentária que usaria fiquei indignada e fiz ver a ela que não concordava com aquilo, mas ela debochou dos meus escrúpulos e seguiu com a palhaçada. Veja só, ela estava nua, enrolada em papéis de formulários da repartição. E nem ao menos é uma mulher bonita, gordíssima como está. Não se dá ao respeito. E certamente foi ela que induziu o Chiquinho a espalhar estas mentiras.

Quanto ao Dr. Adelson, é lamentável, mas ele se excede continuamente comigo, além de ter o hábito da bebida. Vem me assediando há tempos e ultimamente de forma mais ostensiva e inconveniente. Aliás, não só a mim, mas a outras mulheres da repartição como a D. Cecília. Peço que o Sr. seja muito cauteloso quanto a esta calúnia envolvendo o meu nome e o do Superintendente. Temos uma longa amizade profissional e não gostaria que isto servisse para prejudicá-lo ou a mim. Inclusive o informarei do que está ocorrendo.

Abel começou a sentir que aquele caso era mais intrincado do que pensara a princípio. Se fosse verdade aquela ligação amorosa da Dna Marli com o Superintendente ele deveria comportar-se de maneira cautelosa porque uma amante do chefe furiosa é pior do que uma esposa traída. Deste momento em diante decidiu trancar os depoimentos em um cofre, longe dali, e dispensar os outros dois membros da comissão de participarem das audiências. Pensou: “Quando eu chegar a uma conclusão os chamo para formalizar o relatório final”.

Não houve dificuldade em convencer os seus colegas funcionários que era melhor para eles usarem o período de vigência da comissão como uma espécie de férias. O argumento final, que muito os agradou foi:

– Vocês já viram que o assunto mexe com gente graúda. E recebi ordens de não fazer onda, portanto quanto menos vocês se envolverem melhor. Eu aviso a hora de finalizarmos os trabalhos.

A estagiária Bia, mulher jovem, gordíssima e aparentando nervosismo e irritação, não esperou as perguntas:

– A Dna Marli é uma dissimulada. Faz este gênero de boazinha e disso não tem nada. Tarada. Papa-anjo. Não há servente, garoto novo, na repartição que ela não queira comer, e sempre prometendo alguma vantagem. Nunca me meti com ela embora os meninos me contassem tudo. No dia da festa de natal eu precisava me trocar em algum lugar para não quebrar a surpresa. Ela, que estava de olho no Chiquinho me levou, junto com ele lá pro terraço. Não falou nada da fantasia, e eu não estava nua porra nenhuma, mas com uma malha cor da pele. Fui para a festa e ela ficou com o garoto lá em cima, com a desculpa que precisava arrumar o quarto. Só fui ver os dois de novo no fim da festa. Aí o Chiquinho, meio de porre, começou a falar que tinha comido ela e tal. Ainda disse para ele que ficasse calado, mas, sabe como é…

A tal da Dna Goreti estava lá, com o pentelho do filho dela. Achei até que ela era mulher do zelador. O quartinho é bem maneiro. Tremendo abatedouro…

Abel recebeu Dna Cecília e teve o alívio de conversar com alguém calmo e de boa educação. Era uma mulher madura com seus cinqüenta e tantos anos, pequena, de feitio atlético, com lindos olhos azuis embora não fosse exatamente bonita. Bem vestida com discrição, séria, mas simpática. Esperou Abel explicar a situação. Desde há alguns dias que ele não deixava os depoentes lerem o que foi dito pelos outros, mesmo porque não fizera mais as transcrições. Era irregular isto, mas altamente prudente dado o teor das revelações.

– Sou uma mulher viúva já há algum tempo e mantenho um relacionamento afetivo com o engenheiro Adelson. Sei que é casado e, longe de mim, criar qualquer constrangimento para ele, que me trata com muita consideração. Mas, desde a festa de natal da repartição para cá venho recebendo telefonemas anônimos com ameaças e xingamentos, todos se referindo ao nosso caso. Falei com o Adelson e ele me contou que a esposa dele também estava recebendo os mesmos trotes. O ambiente ficara muito tenso na sua casa. Perguntei-lhe o que faríamos e ele me disse que iria descobrir quem estava por trás de tudo. Não sei o que descobriu, mas eu mesma terminei por saber, por uma colega da repartição, que o autor das fofocas era o Dr. Walmir. Quando alguém me falou que o Adelson fora à sala do Walmir eu me dirigi para lá temendo o pior, pois sei do gênio do Adelson. Aí, na hora em que entrei…

– A Sra. então acha que o alvo do cinzeiro não era o Chiquinho?

– Claro que não. O alvo era o Dr. Walmir, tenho certeza.

– A Sra. voltou a conversar com o Sr. Adelson após a agressão?

– Sim, e ele me confirmou isto, que atingira o rapaz sem querer, mas que mirara no Walmir.

Abel encerrou o expediente e programou as próximas inquirições, mas considerou que tinha nas mãos um enorme abacaxi para descascar. Nisto, entrou em sua sala o Sr. Jadir.

Abel polidamente o recebeu. Ele não estava programado para depor, mesmo porque não havia nada que o ligasse ao processo, mas diante das histórias que já ouvira não poderia descartar nada, ainda mais se fosse algo espontâneo.

– Pois então, Sr. Jadir. Devo considerar esta conversa como algo oficial no processo ou não?

– Como Sr. desejar mas se possível eu preferia que fosse uma conversa privada.

– Pois que seja.

– Bem, eu nem sei como começar…

Abel notou que o Sr. Jadir era uma figura ímpar. Baixo, gordinho, usava uma peruca um tanto desengonçada, um jeito levemente efeminado e um olhar evasivo. Era funcionário graduado da repartição com muitos anos de serviço. Abel não lera a sua pasta funcional, mas tinha a impressão que era alguém com um comportamento correto. Estava visivelmente encabulado e, Abel temendo que ele refluísse no seu depoimento, que parecia trazer novidades ao caso, prontamente buscou manter uma conversação conciliatória:

– Sr. Jadir, tudo que é dito nesta sala só está sendo ouvido por mim e, no seu caso, o Sr. nem mesmo está oficialmente depondo, de modo que dou-lhe minha palavra, nada sairá desta sala.

– Eu agradeço a sua compreensão porque tenho de falar sobre coisas muito delicadas e isto é muito difícil para mim, mas eu quero apenas que a verdade prevaleça.

– Pois fique à vontade.

– Sr. Abel – e Jadir olhou-o firmemente nos olhos – eu e o Walmir estamos apaixonados.

Abel, por um segundo, achou que iria perder o controle daquela situação. “Só faltava essa, eu virar consultor sentimental de viado”. Mas antes que iniciasse qualquer manobra evasiva, um dedo de curiosidade o manteve escutando.

– Eu explico. Já de muito tempo que tenho esta admiração pelo Walmir e, tudo indicava que era mútuo o sentimento, mas o Sr. sabe, é muito difícil esta situação. O Walmir é casado, um funcionário respeitado e eu nunca deixei transparecer na repartição as minhas preferências. Mas sempre nos paquerávamos discretamente, até que na festa de natal, não sei por que, em determinado momento nos revelamos. Foi uma loucura.

A esta altura Abel percebeu que Jadir aumentava seu maneirismo efeminado e revirava os olhos ao contar o episódio. Mesmo achando a situação ridícula resolveu não interromper a narrativa, porque, incomodado ou não, já agora queria saber dos detalhes. Jadir continuava:

– Ocorre que nos distraímos na hora e a Dna. Cecília nos flagrou na intimidade, no meu gabinete, Foi muito constrangedor e o Walmir ficou muito perturbado. Ele correu atrás dela como um desesperado, não sei para que. Desde então tem me evitado, às vezes agressivamente. Fui perguntar para Dna Cecília o que ele havia falado sobre o assunto e de mim. Ela simplesmente me chamou de pervertido e virou-me as costas. Fiquei fulo da vida e resolvi me vingar do Walmir e dela, daí, como eu sabia do caso dela com o Adelson, fiz os telefonemas anônimos. Arranjei um jeito de fazer chegar a ela a informação que fora o Walmir quem fizera a fofoca. Infelizmente sobrou para este rapaz que não tinha nada a ver com o caso. O Walmir me ama só que é um fraco e não quer admitir isto. Preferiu me humilhar. Mas eu o perdôo porque sei que voltaremos a ficar juntos.

Abel estava perplexo com a transformação de Jadir à sua frente naqueles breves momentos. A voz, os trejeitos, o olhar, parecia que o homem fora possuído por uma entidade. Não resistiu e perguntou:

– Você usa algum pseudônimo? Um nome feminino secreto?

– Natália! – respondeu prontamente o Sr. Jadir – Não é um nome bonito e bem feminino?

– Certamente. Mas o Walmir sabe disto? Ele também tem um nome especial?

– Claro que sabe. Ele escolheu um nome, Carmem. Eu gosto de Carmem.

– É, fica bonito, Natália e Carmem. Então pelo que entendi o Adelson atirou o cinzeiro no Walmir, mas errou e acertou o Chiquinho.

– É isso.

– Sr. Jadir… Natália… – Jadir/Natália sorriu – foi muito esclarecedora a nossa conversa, sei que ajudará muito no processo, mas por hora eu prefiro deixá-la de fora. Fique tranqüilo que nada será revelado.

Jadir saiu da sala rebolando como uma passista de samba mas, para o pasmo de Abel, tão logo atravessou a soleira da porta a Natália desincorporou e ele voltou a ser o reconhecível Jadir de sempre. “Se eu não visse, não acreditaria” pensou Abel.

O Dr. Walmir estava muito ressabiado ao defrontar-se com Abel. Nervoso, agitava-se na cadeira. Os acontecimentos daquelas semanas foram demasiadamente tensos para ele. Primeiro o flagrante que Dna Cecília testemunhara dele com o Jadir. Falara com ela e implorara sua compreensão. Alegou que bebera muito e não estava sabendo bem o que fazia. Envergonhava-se daquilo e por aí foi… mas percebeu apenas o asco no olhar da funcionária. Depois, o assédio insano do Jadir, ligando para sua casa dizendo-se a Natália e fazendo juras de amor. Walmir desligava e ele voltava a ligar ameaçando fazer um escândalo. Um tormento incomparável. Finalmente aquela agressão do Adelson em sua sala.

Abel percebendo a intranqüilidade do Dr. Walmir procurou um tom amistoso e descontraído:

– Dr. Walmir, o Sr. tem alguma explicação para o comportamento do engenheiro Adelson? Quero dizer, do ponto de vista profissional visto que o Sr. é médico e psiquiatra.

Walmir pareceu descontrair um pouco e assumir sua postura de profissional:

– Para lhe dizer a verdade Sr. Abel eu não poderia adiantar um diagnóstico, mas pelos antecedentes do Adelson eu diria que o comportamento dele está prejudicado pelo hábito da bebida. O Adelson é um alcoólatra, não tenho dúvidas e ultimamente vem apresentando atitudes um tanto inconvenientes.

– O senhor tem conhecimento sobre o envolvimento dele com a Dna. Cecília?

– Sim, tenho e acho que este foi um dos pontos que o levou à bebida. Sabe, esta mulher é uma falsa. Parecendo simpática e prestativa ela consegue a confiança das pessoas, e depois, usando o conhecimento desta intimidade as chantageia em benefício próprio, foi assim com o Adelson. Ela está destruindo o casamento dele.

– A Dna Cecília já o chantageou?

A pergunta atingiu alguma área sensível do Dr. Walmir e Abel imaginava qual era. “Máxima cautela agora” pensou enquanto aguardava a resposta.

– Como assim, me chantageou? – Walmir estava desconcertado e sondava a intenção de Abel. “Este cara sabe alguma coisa” – pensou o médico enquanto ganhava tempo.

Abel resolveu dar um passo adiante sobre a hesitação do depoente.

– Eu tomei o depoimento da Dna Cecília e ela me pareceu um tanto hostil a seu respeito.

– Ah! Aquela vaca!

Abel manteve-se em silêncio apenas mirando o semblante de Walmir que estava agora visivelmente ansioso. Certamente se perguntando até onde Abel sabia de sua vida. Finalmente de uma forma um tanto agressiva ele continuou:

– O que foi que ela disse a meu respeito? É tudo mentira. Eu nunca fiz qualquer telefonema para a mulher do Adelson. Foi ela mesma que forjou tudo isto. No dia da cinzeirada eu a chamara e ao Adelson para passarmos a limpo este caso. Por isso eles estavam lá. Ela envenenou o engenheiro com esta história a ponto dele tentar me matar.

– Dr. Walmir, quem fez a intriga, inclusive os telefonemas, foi o Sr. Jadir, conforme pude apurar. Mas não sei com que intuito.

A informação fez Walmir desabar. Primeiro ficou mudo e lívido e depois desandou a chorar como uma criança, aos soluços. Acalmou-se finalmente e relatou com detalhes o que Abel já ouvira do Jadir, exceto seu codinome Carmem. Perguntou ao médico:

– Devo concluir que o cinzeiro tinha como destino a sua cabeça e por má pontaria acertou o Chiquinho?

– Exato.

– O que o Sr. sabe do relacionamento do Adelson com a Dna Marli?

– Eles tinham um caso – Walmir, mais calmo estava fluente e decidido a revelar tudo que sabia – aliás, a Dna Marli só não trepou ainda com as maçanetas das portas. A mulher é uma tarada. Ninguém fala nada porque ela é amante do Superintendente. Não sei o que ela tem de excepcional para enfeitiçar os homens. O superintendente quando está na cidade fica na casa dela e o Adelson lambe o chão que ela pisa. No entanto ela o despreza. O Adelson não dá sorte mesmo com as mulheres que se envolve.

O mesmo fenômeno que acometia o Jadir atacava Walmir que aos poucos ia ficando afetado e efeminado, embora mais discretamente do que Jadir/Natália.

– O que você sabe sobre a Dna Marli e o Chiquinho?

– Nada, mas durante a festa de natal da repartição ela sumiu com ele por horas. Deve ter ido trepar com o rapaz, com certeza.

– O Adelson percebeu o fato?

– Claro, pois todo mundo viu o que estava acontecendo.

– E ele não comentou nada?

– Não.

Abel dispensou o médico e asseverou-lhe que seus segredos estavam seguros com ele. A história tomava rumos inesperados, mas ainda longe de apontar uma solução para o inquérito. “Uma solução que livre a minha cara” pensou enquanto ia para casa.

Alguns dias depois o Chefe da repartição, o Dr. Graça chamou Abel em seu gabinete. A rotina de sempre aconteceu. Horas esperando para que o paquiderme do Graça o atendesse com aquele fastio costumeiro. Mal lhe dirigiu a palavra e não o encarou nenhuma vez. Após os minutos de silêncio, em que dormitava, o Dr. Graça deu-lhe a ordem:

– O superintendente me ligou. Quer tudo terminado em no máximo três dias.

Abel julgou que fizera bem em dispensar os outros componentes da comissão e de certo modo era um alívio a antecipação do relatório. Poderia encerrar tudo ali mesmo, mas havia a curiosidade despertada. Resolveu que tomaria mais alguns depoimentos.

O zelador Casemiro já trabalhava no prédio há décadas. Participara mesmo da sua construção. Aposentara-se e conseguira ser recontratado e continuar à frente da zeladoria. Não havia um só recanto do prédio que ele não conhecesse, o mesmo se podendo dizer das pessoas que lá trabalhavam. Seu principal trunfo estava no fato de toda vez que havia algum distúrbio da ordem no prédio ele conseguia desvendar as causas e resolver o problema. Ademais, nunca tomou nenhuma decisão sem consultar os seus superiores. Isto fazia dele uma pessoa altamente confiável e mesmo necessária. O próprio superintendente ao qual conhecera quando este iniciava a carreira tinha o Casemiro em alta conta. Até mesmo o Dr. Graça o respeitava. Abel considerou todos estes fatos ao chamar o Casemiro para depor. Não tanto pelo que este poderia alterar no relatório final, que já fora estabelecido na conversa com o Dr. Graça, mas para saciar sua crescente curiosidade sobre a vida daquela repartição.

– Sr. Casemiro creio que está a par dos acontecimentos lamentáveis que vitimaram o Chiquinho e portanto, quero lhe fazer algumas perguntas que podem esclarecer melhor o episódio. Primeiramente o que o Sr. sabe sobre a permanência da Sra Goreti no apartamento da zeladoria?

Abel fez esta pergunta propositadamente para deixar o Casemiro na defensiva, pois sabia que ele participara de algum modo da irregularidade, no mínimo fazendo vistas grossas ao fato. Dependendo de como reagisse seria possível obter mais informações.

– Ah! Isto era muito irregular, com certeza. Por diversas vezes fiz ver à Dna Marli e à própria Dna Goreti que elas deveriam encerrar este caso.

– O Sr. fala no plural, elas, porque? Já que a responsável pela autorização era a Dna Marli.

– Porque elas são muito amigas. A Dna Marli estava sempre lá.

– Casemiro, quando a Marli estava lá ela tinha em geral companhia masculina e a Goreti saía, levando inclusive o filhinho. Isto a deixava constrangida. Não creio que eram amigas para falar a verdade.

– Bem, já que o Sr. está tocando no assunto devo dizer que procede. Aliás, tenho muita pena daquele menino. Vive num entra e sai do alojamento, que só Deus sabe o que o pimpolho já viu. E pior é que a chaminé do restaurante é bem próxima do quarto. O garoto cheira a batata frita. É uma rotina muito dura. Primeiro eles têm de sair bem cedo do prédio, durante a semana, pela porta dos fundos e retornarem logo a seguir para darem a impressão que estão chegando. O guri vai para creche. Na saída ela leva o filho para passear até que possam retornar sem que ninguém veja. Nos fins de semana só podem sair escondidos pela escada de incêndio. É uma vida muito sacrificada.

– A Dna Goreti também recebe visitas como a Marli faz?

– Menos que a Dna Marli. Ela mantem amizade com alguns funcionários. Aliás, quem a apresentou a eles foi a Dna Marli.

– Devo concluir, portanto, que tanto a Marli como a Goreti usavam o apartamento para terem encontros amistosos com funcionários da repartição e que a Goreti morava já há meses com o filho pequeno nas dependências da zeladoria. Imagino que o Sr. tenha visto ou ouvido as conversas destes freqüentadores eventuais mas em particular o que pode me dizer sobre o Engenheiro Adelson?

– Ah! O engenheiro ia muito lá, tanto com a Dna Marli quanto para visitar a Dna Goreti. E mesmo mais de uma vez foi com a Dna  Cecília. Mas o xodó dele era mesmo a Dna Marli.

– O engenheiro é um cara muito popular com as mulheres, eu percebo.

– E como. Conheço ele desde que começou a trabalhar no prédio. É um tremendo boca-de-fogo. Mas a Dna Marli conseguiu derrubar o cara. Ela dá as ordens nele.

 – Ele era ciumento com ela?

– Ih! Agora mesmo, quando ele soube da história do garoto com a Dna Marli, ficou uma fera. Eu escutei uma discussão dos dois que foi braba. Ela deu um fora nele. E ele acabou implorando para ela reconsiderar. Ela foi cruel. Disse que ele era um velho borocoxô. É bonito? O homem até chorou, mas ela não deu colher de chá. E ainda disse que ia reclamar com o patrão. O senhor sabe, o superintendente.

Abel não mais interrompeu Casemiro, que continuou por muito tempo a desfiar as histórias que sabia da repartição. “Porque“, pensou ele, “um sujeito tão boquirroto goza da confiança de tanta gente“?

-… E tem a Dna Consuelo, aquela toda metida, que – sabe? – do samba: “não fala com pobre, não dá mão a preto não carrega embrulho“. Pois ela quando bebe fica um vulcão. Nesta última festa de natal subiu na mesa para sapatear e rodava a saia prum lado e pro outro, pelada por baixo. No dia seguinte parecia uma dama, como se nada tivesse acontecido. Tem de tudo aqui. A Maria do Céu – sabe? – pois então, ficou atrás da Sueli – conhece? – encurralou ela na salinha do café e se não fosse eu acudir à menina, a do Céu tinha papado ela ali mesmo.

Casemiro contava os casos e ria-se satisfeito. Parecia que descrevia cenas de um zoológico. Abel apesar de estar gostando das histórias resolveu interromper o prolixo zelador:

– Pelo que o Sr. me conta, o Adelson então queria mesmo acertar a cabeça do Chiquinho por ciúmes da Marli?

– Não tenho dúvida. O homem estava caidinho por ela e fez este desatino. Essa aí tem aquilo de ouro.

Abel finalmente já tinha tudo para encerrar o inquérito que cada vez mais se parecia com uma comédia de folhetim.

Preparou-se para ouvir o principal personagem deste episódio, o engenheiro Adelson.

Este cumprimentou Abel polidamente ao entrar na sala de depoimentos. Era um homem alto, magro, já perto dos sessenta anos, óculos grossos, farto bigode, semblante marcado por rugas de expressão, cabelos grisalhos e voz de barítono. Sisudo e um pouco agitado, não hesitou ao relatar os fatos:

– O senhor já deve estar a par de tudo, pelo visto, portanto não há nada a esconder. Realmente perdi a cabeça com aquele rapazinho. É um escroto e muito abusado. Merecia mesmo umas porradas, mas certamente não o que lhe fiz. Excedi-me. O motivo? Ciúmes. Eu estava totalmente enfeitiçado pela Marli. E repito, estava. Depois que cometi este gesto insensato é que vi o quanto estava perturbado. De certo modo ainda estou, mas procurei ajuda e tenho visto um psiquiatra. Aliás, estou de licença médica para tratamento. Não sou louco, mas tive um surto de insanidade, é claro. Não que eu queira com isto me livrar das acusações, não, não sou covarde. Inclusive já entrei em contato com o advogado dele para acertar uma indenização adequada, mas é evidente que ainda estou passando por um momento psicológico delicado. A Marli é uma mulher muito perigosa. Bem, tem a bebida. Certo que é difícil eu admitir isto, mas não há como negar. Está incluído no meu tratamento. Creio que a Marli soube me manipular através deste vício. Nunca pensei que ela se rebaixasse tanto, dando em cima de fedelhos. Não há dúvida que é uma pedófila. Claro que eu tinha uma fixação sexual nela, a bem da verdade, ela realmente sabe o que fazer com um homem. Também, com tanta prática. Desta parte eu vou sentir falta. E ela sabe o quanto é gostosa e usa isto como um trunfo, uma arma. Vou lhe dizer, privadamente, só para seus ouvidos, foi a melhor chupada que já tive. Vale realmente à pena. E tem mais, dá mole. Se chamar aqui e propuser leva na hora. Mas tem um preço a pagar. Pensa o que? O superintendente não vai largar ela por nada, mas vai ter de manter a boa vida dela para usufruir daquela moita quentinha. E bota quentinha nisso. E como mexe. Meu Deus! Que quadris. Que bunda, que peitos! Eu sabia que ela tinha o Superintendente entre as pernas, tudo bem, é um homem distinto, mas um estafeta? Vá lá que o garoto é novo, não vou competir com isso, mas e o nível? Eu até aceito que ela seja livre, afinal, que posso exigir? É uma mulher solteira, independente, mas ela nunca poderia ter dito para mim o que disse. Eu via como ela gemia comigo. E vem me dizer que não gostava, que eu estava broxa? Vadia. Ela sim que merecia uma cinzeirada. Aliás, ela gosta de levar umas bofetadas…

Abel, que apenas perguntara qual a versão que o engenheiro dava para os fatos, foi envolvido numa peroração versando sobre todo tipo de cacoetes e taras sexuais da Dna Marli e demais mulheres com quem Adelson teve algum relacionamento, e foram muitas. Aquela repartição era digna do Marquês de Sade e outros tarados históricos. Nenhuma reputação estava a salvo naquele lugar. Precisava dar um fim àquela catadupa de obscenidades as quais Abel já desconfiava não serem verdadeiras. O engenheiro Adelson era um impostor quando alegava insanidade no ato que cometera, mas isto não impedia de considerá-lo um desequilibrado. E esta era a salvação do processo. Com muito tato foi possível interromper o discurso concupiscente do funcionário e mandá-lo embora.

O relatório que apresentou tinha apenas uma lauda e não foi difícil fazer os outros componentes da comissão assinarem. Concluiu pelo desequilíbrio mental do engenheiro Adelson, como atestava o psiquiatra.

Os meses passaram. Naquele dia, cedo, pôs-se à espera para ser recebido pelo Dr. Graça. A finalização do processo da maneira que Abel propusera fora bem vinda na alta administração. A repartição logo se prepararia para outra festa de natal. Dna Cecília se aposentou e eventualmente visitava o Adelson na Casa de Saúde em que ele se tratava do alcoolismo. Isto acabou fazendo com que ele fosse expulso do local por comportamento inadequado.

Dna Goreti finalmente retirou-se do quarto no terraço, mas teve de gastar algum dinheiro para tratar da alergia do filho, contraída por causa da seguida exposição à fumaça do restaurante. O menino por fim não cheirava mais a batata frita. Jadir/Natália e Walmir/Carmem se envolveram numa cena de pugilato na repartição – durante a festa junina – por causa de uma terceira pessoa num caso ainda mal explicado. A Bia fora para um spa, perdera 50 quilos e diziam, tornara-se anorética. O Chiquinho fora demitido, mas outros estafetas eram seguidamente contratados pela Dna Marli. Ele tinha empregos esporádicos e passava muito tempo na praia jogando frescobol, desta forma, conseguira as benesses de muitas senhoras interessadas em ajudá-lo. Casemiro fora encontrado morto no poço do elevador onde aparentemente caíra por acidente.

Abel conseguira sua promoção e agora a tão esperada transferência para o departamento jurídico parecia certa. Finalmente se livraria daquela insana repartição.

Anunciaram que o Dr. Graça já iria atendê-lo. Mais uma vez a nauseante rotina de ficar esperando o madorrento Graça praticar o que mais gostava: dormitar na frente dos outros e desprezar o próximo.

O Graça, num desdém estudado falou para Abel:

– Sua transferência para o Departamento Jurídico foi cancelada. O Superintendente o quer próximo a ele no Departamento Internacional.

Não poderia ser melhor.